terça-feira, 29 de setembro de 2009

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Fragmento de O OLHO MAIS AZUL

Toni Morrison



















" Frieda e ela conversaram, enternecidas, sobre como Shirley Temple era lindinha.Eu não podia participar dessa adoração porque odiava a Shirley. Não porque era lindinha, mas porque dançava com Bojangles, * quer era meu amigo, meu tio, meu pai e deveria dançar e rir era comigo. Em vez disso, ele desfrutava, compartilhava, concedia uma encantadora dança a uma daquelas garotinhaa brancas cujas meias nunca escorregavam para dentro dos sapatos. Por isso eu disse: " Eu gosto da Jane Withers".

Elas me deram uma olhada intrigada, concluíram que eu era incompreensível e continuaram trocando reminescências sobre a vesga da Shirley.
Mais nova do que Frieda e Pecola, eu ainda não havia chegado ao ponto decisivo na desenvolvimento da minha psique que me permitira gostar dela. O que eu sentia naquela época era ódio puro. Mas antes eu tinha um sentimento mais estranho e assustador do que o ódio por todas as Shirley Temples do mundo. Começou no Natal, com as bonecas ganhas de presente. O presente grande, especial, dado com muito carinho, era sempre uma Baby Boll grande, de olhos azuis, Pela tagarelice dos adultos, eu sabia que a boneca reprensetava o que eles pensavam que fosse o meu maior desejo. Fique pasmada com a coisa e com a aparência que tinha. Eu tinha que fazer o que com aquilo? Fingir que era mãe? Eu não tinha interesse por bebês nem pelo conceito de maternidade. Estava interessada somente em seres homanos da minha idade e tamanho, e não conseguia sentir entusiasmo algum ante a perspectiva de ser mãe. Maternidade era velhice e outras possiblidades remotas. Mas aprendi depressa o que esperavam que eu fizesse com a boneca: embalá-la, inventar historinhas em torno dela, até dormir com ela. Os livros de figuras estavam cheios de garotinhas dormindo com suas bonecas. Geralmente bonecas de pano Ragged Ann, mas essas estavam fora de questão. Eu ficava enojada e secretamente assustada com aqueles olhos redondos imbecis, a cara de panqueca e o cabelo de minhocas alaranjadas.


























As outras bonecas, que supostamente me dariam grande prazer, tiveram êxito em fazer o oposto. Quando a levei para a cama seus membros duros resistiam ao meu corpo - as pontas dos dedos afilados naquelas mãos com covinhas arranhavam. Se eu me virasse dormindo, a cabeça fria como um osso batia na minha. Era uma companheira de sono muito desconfortável e patentemente agressiva. Segurá-la não era mais gratificante. A gaze ou renda engomada do vestido de algodão tornava irritante qualquer abraço. Eu tinha uma única vontade: desmembrá-la. Ver do que era feita, descobrir o que havia de tão estimável, de desejável, de beleza que me havia escapado, e aparentemente só a mim.
Adultos, meninas mais velhas, lojas, revistas, jornais, vitrines - o mundo todo concordava que a boneca de olhos azuis e cabelo amarelo e pele rosada era o que toda menina mais almejava. "Olha", diziam, "ela é linda, e se você for 'boazinha' pode ganhar uma." Eu passava o dedo no rosto, pensando nas sobrancelhas desenhadas com um único traço; cutucava os dentes perolados, enfiados como duas teclas de piano entre lábios vermelhos em forma arco. Contornava o nariz arribitado, enfiava o dedo nos olhos de vidro azul, torcia o cabelo loiro.





























Não conseguia gostar dela.
Mas podia examiná-la para ver o que era que todo mundo dizia que era adorável. Se eu quebrasse os dedos minúsculos, dobrasse os pés chatos, soltasse o cabelo, girasse a cabeça, a coisa fazia um som - um som que, diziam, era um meigo e choroso "Mamãe", mas que, pra mim, soava como o balido de um cordeiro agonizando ou, mais precisamente, a porta da nossa geladeira abrindo com suas dobradiças enferujadas em julho. Se eu lhe removesse o olho frio e estúpido, continuava balindo "Aaaahhhh" se arrancasse a cabeça, sacudisse a serragem para fora, rachasse as costas contra a grade de metal da cama, ela continuava balindo. As costas de gaze rachavam e eu via o disco com seis furos, o segredo do som. Uma mera coisa redonda de metal.

...

Eu destruía bonecas brancas.

Mas o desmembramento das bonecas não era o verdadeiro horror. O que realmente aterrorizava era a transferência dos mesmo impulsos para garotinhas brancas. A indiferença com que eu poderia trucidá-las era abalada apenas pela minha vontade de fazer isso. Para descobrir o que me escapava: o segredo da magia que elas exerciam sobre os outros. O que fazia as pessoas olharem para elas e dizer “Aaaaaaahhhhhh”, mas não para mim ? O olhar de mulheres negras ao se aproximar delas na rua e a meiguice possessiva com que tocavam quando lidavam com elas.
Se eu as beliscasse, os seus olhos - ao contrários do brilho desvairado dos olhos da Baby Doll - contraíam-se de dor, e o grito delas não era o som da porta da geladeira, mas um fascinante grito de dor. Quando entendi como essa violência desenteressada era repugnate, que era repugnante porquer era desenteressada, a minha vergonha debateu-se em busca de refúgio. O melhor esconderijo foi o amor. Assim, conversão do sadismo original em ódio fabricado, em um amor fraudolento. Um pequeno passo até Shirley Temple. Muito mais tarde apredi a adorá-la, exatamente como aprendi a me deliciar com a limpeza, sabendo, mesmo enquanto aprendia, que mudar foi adaptar sem melhorar."


_________________________

"* Bill "Bojangles" Robinson (1878-1949), dançarino de sapateado. (N.T.)"








Os Fragmentos acima foram retirados do livro O Olho Mais Azul, o romance de estréia de Toni Morrison, escrito em meados da década de 60, a autora dona de uma lucidez e sensibilidade apaixonate foi a primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993, com este romance. Esses fragmentos foram alguns dos que mais me chamaram atenção, é parte da narração da personagem Claudia McTeer, uma menina negra de 10 anos, na década de 40, que descreve suas impressões sobre sua Baby Doll de olhos azuis, esses trechos estão no início do livro (nas páginas 23, 24 e 25). Essa foi só uma amostra de um livro escrito por uma mulher preta, sobre pretas(os) e para pretas(os).


"Cá entre nós," é esplêndido.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Mamice

Cuti


























Sou daqueles
que cobram o leite derramado

vovó que não era vaca
morreu seca
e seus bezerros brancos
agora touros desmamados
ainda procuram tetas
para seus rebentos viciados

sou daqueles
que cobram o leite derramado
e não aceito esmola
do que me foi roubado