sábado, 13 de junho de 2009

Estou triste ?

Alice Walker

















Durante quase três anos eu e a pessoa que morava comigo alugamos uma casa no campo à beira de uma grande campina que parecia ir direto da nossa varanda até as montanhas. Porém, as montanhas estavam muito longe, e entre nós e elas havia, na verdade, uma cidade. Um dos aspectos agradáveis da casa era o fato de não percebermos isso.


Era uma casa com muitas janelas, baixas e largas, quase do assoalho até o teto, na sala de estar, que dava para a campina, e foi por uma delas que vi, pela primeira vez, nosso vizinho mais próximo, um grande cavalo branco, pastando, balançando a crina, andando de um lado para o outro ? não por toda a campina, que se estendia até se perder de vista, mas nos cinco e poucos acres cercados, ao lado dos vinte e poucos que tínhamos alugado. Logo fiquei sabendo que o cavalo, chamado Azul, pertencia a homem que morava em outra cidade, e era tratado pelo nosso vizinho. Ocasionalmente, uma das crianças, em geral um adolescente forte, mas às vezes uma garota bem mais nova, ou um garoto, montavam Azul. Apareciam na planície, subiam no dorso do animal, cavalgavam furiosamente por dez ou quinze minutos, desmontavam, batiam com a mão nos flancos de Azul e só apareciam depois de um mês ou mais.

Havia muitas macieiras no nosso quintal e uma delas ficava ao lado da cerca, quase ao alcance de Azul. Começamos a dar maçãs para ele, e Azul adorava, especialmente porque no verão a relva da campina - tão verde e suculento em janeiro - ficava seca por falta de chuva e Azul mastigava os talos secos, desanimado. Às vezes ele ficava imóvel ao lado da macieira e quando um de nós aparecia, relinchava, bufava alto ou batia com os cascos no chão. Naturalmente isso queria dizer: quero uma maçã.

Era maravilhoso apanhar algumas maçãs das árvores ou as que tinham caído no chão durante a noite e pacientemente segurá-las, uma a uma, perto da boca enorme com dentes largos de Azul. Eu me encantava como uma criança com os lábios escuros e flexíveis, os dentes enormes em forma de cubos que mastigavam maçãs, inteiras, com tamanha finalidade, e sua enormidade, o peito largo, ao lado da qual eu me sentia tão pequena. Quando eu era pequena, costumava andar a cavalo e tinha uma amizade especial por uma égua chamada Nan, até o dia em que eu estava montando, meu irmão a espantou e fui atirada de cabeça numa árvore. Quando voltei a mim, estava na cama e minha mãe inclinava-se preocupada ao meu lado; silenciosamente concordamos que montar talvez não fosse o esporte mais seguro para mim. Desde então eu ando, e prefiro andar a montar - mas tinha esquecido a profundeza do sentimento que existe nos olhos de um cavalo.

Assim, não estava preparada para a expressão nos olhos de Azul. Azul estava solitário. Azul estava terrivelmente solitário e entediado. Isso não me deixou chocada; cinco acres para andar sozinho sem parar, mesmo na mais bela das campinas - como a dele - não é exatamente interessante, e quando a estação das chuvas dava lugar à seca, era pior ainda. Não, fiquei chocada por ter esquecido que animais humanos e animais não humanos podem se comunicar muito bem; quando somos criados convivendo com animais, sabemos disso. Crescemos e esquecemos. Entretanto, os animais não mudaram. São, na verdade, criaturas completas (pelo menos parecem ser, muito mais do que nós) não sujeitas a mudanças; faz parte da sua natureza expressar o que sentem. O que mais podem expressar? E é o que fazem. E de um modo geral, são ignorados.

Depois de dar as maçãs a Azul, eu voltava para casa, sentindo que ele me observava. Então não ia ganhar mais maçãs? Seria aquela sua única distração para o dia todo? O filho pequeno do meu companheiro resolveu aprender a fazer colchas de retalhos; trabalhávamos em silêncio nos nossos respectivos bastidores enquanto eu pensava...

Bem, sobre a escravidão: sobre crianças brancas criadas por negros, que aprendiam com mulheres negras o primeiro amor incondicional e então, quando chegavam aos doze anos mais ou menos, aprendiam que precisavam "esquecer" os profundos níveis de comunicação entre elas e a "ama" que conheciam. Mais tarde poderiam dizer calmamente, "Minha velha ama foi _ _". Preencham o espaço em branco. Muitos anos depois uma mulher branca diria: "Não entendo esses negros, esses pretos. O que eles querem? São tão diferentes de nós"

E sobre os índios, considerados como "animais" pelos ?colonizadores? (um eufemismo muito benigno para o que realmente eram), que não compreendiam essa descrição como um elogio.

E sobre os milhares de homens americanos que se casam com japonesas, coreanas, filipinas e outras mulheres não de língua inglesa, que se consideram felizes, "abençoadamente felizes", até suas mulheres aprenderem a falar inglês, quando então o casamento desmorona. O que então esses homens viam, quando olhavam nos olhos das mulheres com que se casaram, antes que elas aprendessem a falar inglês? Aparentemente apenas o próprio reflexo.

Pensava na impaciência da sociedade para com os jovens, "Por que tocam essa música tão alto?". Talvez os filhos tenham ouvido a música de povos oprimidos, que seus pais dançavam antes de terem nascido, com seus braços apaixonados, mas suaves, de aceitação e amor, e não possam entender como seus pais não souberam ouvi-los.

Não sei há quanto tempo Azul habitava seus belos e tediosos cinco acres antes de nos mudarmos para aquela casa; um ano depois de termos chegado - e viajado para outros vales, outras cidades, outros mundos - ele ainda estava ali.

Porém no nosso segundo ano na casa, aconteceu algo na vida de Azul. Certa manhã, olhando pela janela para a neblina que se estendia como uma larga fita sobre a campina , vi outro cavalo, na outra extremidade do campo de Azul. Azul parecia estar com medo do outro animal e durante alguns dias nem tentou aproximar-se dele. Passamos uma semana fora. Quando voltamos, Azul resolvera fazer amizade e os dois cavalos passeavam e galopavam juntos e Azul já não ia tantas vezes até a macieira.

Quando se aproximava da árvore era sempre com a amiga e havia uma nova expressão em seus olhos. Uma expressão de independência, de segurança, de inalienável eqüinidade. A amiga finalmente ficou prenhe. Durante meses e meses, tive a impressão de que havia um sentimento mútuo de justiça, de paz. Eu dava maçãs aos dois. A expressão nos olhos de Azul era de um atrevido "Isso é a vida".

Mas não durou. Certo dia, depois de uma visita à cidade, saí para dar algumas maçãs a Azul. Ele estava esperando, pelo menos foi o que pensei, mas não sob a macieira. Quando sacudi a árvore e dei um pulo para trás, afim de evitar que as maçãs caíssem em cima de mim, ele nem se moveu. Levei algumas para ele. Azul mastigou metade de uma maçã. O resto, deixou cair no chão. Tive medo de olhar em seus olhos - porque já havia notado, é claro, que Marrom, sua companheira, não estava lá. Se eu tivesse nascido na escravidão e meu companheiro tivesse sido vendido ou morto , meu olhos seriam iguais aos dele. As crianças do vizinho explicaram que a companheira de Azul fora ?levada para ele? (a mesma expressão usada pelos antigos, eu havia notado, quando falavam de uma ancestral, durante a escravidão, engravidada pelo dono) para que ele a cobrisse e ela ficasse prenhe. Conseguindo isso, a égua foi levada pelo dono, que morava em outro lugar.

Ela vai voltar? perguntei.

Não sabiam.

Azul parecia um ser humano enlouquecido. Para mim, Azul era um ser humano enlouquecido. Galopava furiosamente, como se tivesse um cavaleiro, dando voltas e mais voltas nos seus belos cinco acres de terra. Relinchava até não poder mais. Escavava o solo com as patas. Dava marradas em sua única árvore de sombra. Olhava sempre e sempre para a estrada pela qual a companheira tinha partido. E então, ocasionalmente, quando se aproximava para receber maçãs, ou quando eu as levava até ele, Azul olhava para mim. Era um olhar tão penetrante, tão repleto de dor, um olhar tão humano, que quase me dava vontade de rir (a tristeza era grande demais para me fazer chorar), pensando que certas pessoas não sabem que os animais sofrem. Pessoas como eu que esqueceram, e esquecem a cada dia, tudo aquilo que os animais tentam nos dizer. "Tudo que vocês nos fazem acontecerá a vocês; somos seus professores, como vocês são nossos. Nós somos uma lição", é o que nos dizem basicamente, eu acho. Certas pessoas jamais pensaram nos direitos dos animais; aprenderam que os animais querem ser usados e abusados por nós, como as crianças muito novas "gostam" que as assustemos, ou como as mulheres ?adoram? ser maltratadas e estupradas... São os bisnetos daqueles que acreditavam nisso honestamente porque alguém ensinou a eles o seguinte: "As mulheres não podem pensar", e "negras não podem desmaiar". Porém, o que mais me perturbava nos grandes olhos castanhos de Azul era uma nova expressão, mais dolorosa que o desespero, a expressão de nojo dos seres humanos, nojo da vida; a expressão de ódio. E era estranho o efeito dessa expressão. Pela primeira vez dava a Azul a aparência de um animal selvagem. Significava que ele havia erguido uma barreira para se proteger de mais violência; nem todas as maçãs do mundo poderiam mudar isso.

E assim ficou Azul, uma bela parte da nossa paisagem, muito tranqüilo, visto pela janela, branco contra a relva verde. Um amigo que nos visitava disse certa vez: "Tinha de ser um cavalo branco, a verdadeira imagem da liberdade." E eu pensei, sim, os animais obrigatoriamente são transformados para nós em meras "imagens" daquilo que antes expressavam tão bem. E nos acostumamos a tomar leite de garrafas com imagens de vacas "satisfeitas", de cujas vidas reais nada queremos saber, comer ovos e coxas de "galinhas felizes", mastigar hambúrgueres de bois cheios de integridade, que comandam o próprio destino.

Falando sobre liberdade e justiça para todos, sentamos à mesa para comer bifes. Estou comendo sofrimento, pensei na primeira garfada. E cuspi a carne.

sábado, 6 de junho de 2009

Alisando o nosso cabelo

bell hooks


















Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca!

Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer, para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito.

Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler) não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse ponto de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o cabelo podia estar lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse momento de transição era o que eu e minhas irmãs ansiávamos.

Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. Era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras, ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto a barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo.

Tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança.

Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que eu era “abençoada” porque tinha nascido com “cabelo bom” – um cabelo fino, quase liso –, não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não consegue alisar. Mas esse “cabelo bom” não significava nada para mim quando se colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.

Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a minha vez. Sobre este ritual escrevi o seguinte:

Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres.

É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher [...] Antes que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolo de nossa inocência, juventude, nossa meninice. Então, as mãos que separam, penteiam e traçam nos confortam. A intimidade e a sina nos confortam.

Existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o cabelo, quando se frita o peixe, quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a música soul flutua sobre a conversa.

É um instante sem os homens. Um tempo em que trabalhamos como mulheres para satisfazer umas as necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-estar interior, um instante de alegrias e boas conversas.

Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo. Mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso eram percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou encaracolado, isso não era abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de beleza que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática.

Esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de alisamento do cabelo de mulheres negras. Esse processo foi ampliado de maneira tal que estabeleceu um espaço real de formação de íntimos vínculos pessoais da mulher negra mediante uma experiência ritualística compartilhada.

O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde se poderia ser acolhida e renovar o espírito.

Para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de satisfazer as exigências das crianças ou dos homens. Era a hora em que algumas teriam sossego, meditação e silêncio. Entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. Essas existiam concomitantemente.

Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima.

Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a).

Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade.

Entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco, e aqueles que outrora ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.

Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras, como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu a América Negra, de Manning Marable, South End Pree).

O contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de vínculos íntimos e pessoais entre as mulheres negras. Sentadas embaixo de secadores barulhentos, as mulheres negras perderam um espaço para o diálogo, para a conversa criativa.

Desposadas desses rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos, que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um significante da opressão e da exploração da ditadura branca.

O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco. Antes da integração, os negros podiam se preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu cabelo.

Em discussão sobre a beleza com mulheres negras em Spelman College, as estudantes falavam sobre a importância de ter o cabelo liso quando se procura um emprego. Estavam convencidas, e provavelmente com toda a razão, de que sua oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado. Quando se pediam mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se concentravam na conexão entre as políticas radicais e os penteados naturais, seja com ou sem tranças. Uma jovem que tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em comprar uma peruca de cabelo liso e comprido na hora de procurar emprego.

Nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres negras éramos livres para usar os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as possíveis conseqüências negativas. Com freqüência, os adultos negros, os mais velhos, especialmente os pais, respondiam negativamente aos penteados naturais. Contei ao grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um emprego em Yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável.

Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca. Conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e com mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre a nossa obsessão com o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-estima e a auto-realização. Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado. Muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem que a textura é suave ou agradável ao toque.

Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo.O grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos gerais sobre o nosso corpo.

Em nosso grupo de apoio de mulheres negras, Irmãs do Yam, conversávamos sobre como não gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. Sugeri ao grupo que considerássemos o nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso corpo, mas que se percebesse como algo separado, de novo um território que deve ser controlado, domado.

Para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o cabelo com a repressão sexual. Tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres negras que faziam chapinha ou que fizessem amaciamento, permanente ou outras químicas, quando refletiam sobre a relação do cabelo alisado e a prática sexual, perguntei se as pessoas se preocupavam com o cabelo delas, se temiam que seus pares tocassem os seus cabelos. Sempre tive a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que permaneça no mesmo lugar. Não foi surpreendente que muitas mulheres negras respondessem que se sentiam incomodadas se as pessoas se concentravam e davam muita atenção aos seus cabelos, sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado, fora de controle. Isso porque aquelas de nós que já liberaram o seu cabelo e deixamos que ele se movimente na direção que ele queira, freqüentemente, recebemos comentários negativos.

Olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o cabelo alisado no segundo grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando deixamos o cabelo natural. É irônico viver em uma cultura que enfatiza tanto a necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por outro lado incentiva as mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser mais velhas.

No último semestre, estávamos lendo O Olho mais azul, de Toni Morrison, em uma aula de Literatura. Pedi aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos, que refletissem sobre o que eles pensavam sobre a relação entre raça e beleza física. Uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. Quando eu perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam muito trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu lhe questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente que um penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a estrutura óssea apropriada.

No semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as férias tinha ido ao salão fazer o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as leituras e as discussões de sala de aula e percebeu que estava realmente muito incomodada e amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela não seria mais atraente se não alisasse o cabelo. Reconheceu que esse medo estava enraizado nos sentimentos de baixa auto-estima. Decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu, pois estava linda e muito atraente. Conversamos bastante sobre como dói perceber a relação entre a opressão racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos.

Em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado um manifesto de que um dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o cabelo sem química é o temor de perder a aprovação e a consideração das outras pessoas. As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado. Entre as homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que esse gesto estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do macho.

Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova York, faz anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de me dizer que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo (“dar um jeito”) com o meu cabelo. Por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. O que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava do tato no cabelo não processado.

Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amigos(as) e parceiros(as) amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos várias histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de pessoas completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que parecemos mais bonitas se “arrumamos” (alisamos) o cabelo.

Quando eu ia para a minha entrevista de emprego em Yale, conselheiras brancas que nunca haviam feito nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram para que eu não usasse tranças ou um penteado natural grande (black) na entrevista. Elas não disseram “alisa o seu cabelo”, sugeriam que eu mudasse o meu estilo de cabelo de modo tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo conformismo. Usei tranças e ninguém pareceu notar. Quando fui contratada, não perguntei se importava ou não que eu usasse tranças. Conto essa história aos meus alunos para que saibam que nem sempre temos de renunciar a nossa capacidade de ser pessoas que se autodefinem para ter sucesso no emprego.

Já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda os estudantes durante as minhas conferências. Certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e liderança, entrei em um auditório repleto com o meu cabelo sem química, fora de controle e desordenado. A grande maioria das mulheres negras que ali estavam tinham o cabelo alisado. Muitas delas foram hostis com olhares de desdém. Senti como se estivesse sendo julgada, como uma marginal, indesejável. Tais julgamentos se fazem especialmente direcionado às mulheres negras nos Estados Unidos que resolvem usar dreads. São consideradas, com toda razão, da antítese do alisamento, o que torna o seu estilo uma decisão política. Freqüentemente, as mulheres negras expressam desprezo por aquelas de nós que escolhemos essa aparência.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de desatenção e desdém, somos testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas loiras, cabelo comprido. Em seus escritos, minhas alunas negras descreveram o uso de mechas amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para fingir ter o cabelo comprido e loiro. Recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas para a platéia branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público, usam implantes e apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. Parece haver um nexo definido entre a popularidade de uma artista negra com auditórios brancos e o grau em que ela trabalha para parecer branca, ou para encarnar aspectos do estilo branco. Tina Tuner e Aretha Franklin foram percussoras dessa tendência, as duas pintavam o cabelo de loiro. Na vida cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando cada vez mais químicas para ter cabelo liso e loiro.

Em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da identidade da mulher negra dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher negra veio até mim no final da discussão e me contou que sua filha de sete anos de idade estava deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma que ela havia feito uma peruca que imitava os cachinhos dourados. Essa mãe queria saber o que estava fazendo de errado em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de negro era afirmada e celebrada. Mas ela não havia considerado que o seu cabelo alisado era uma mensagem para a sua filha: nós mulheres negras não somos aceitas a menos que alteremos nossa aparência ou textura do cabelo.

Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu cabelo. Ela usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos seus traços e acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que a escolha dela na realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o que ela pretendia ocultar.

Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e elogios, sugeri que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção de um alto nível de auto-satisfação. As pessoas podem estar respondendo a isso e não à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos sobre as mensagens que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam aceitas se alisassem os seus cabelos!

Certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado. Os problemas são menores; ou, como alguns dizem, “dá menos trabalho” por ser mais fácil de controlar e por isso toma menos tempo. Quando respondi a esse argumento em uma discussão em Spelman College, sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é importante ou de que nós não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as mulheres negras falavam de ter sido criadas em famílias que ridicularizavam ou consideravam desperdício gastar muito tempo com a aparência.

Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas afeta o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma presença autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. As preferências individuais (estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem escamotear a realidade em que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista.

Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de comunicação. Todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. Não podemos nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma identidade.

Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da década de 1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por adquirir a consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político.

Existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí me lembro que, mesmo que esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim, uma expressão individual de desejo, eu sei que gesto semelhante traria outras implicações que fogem ao meu controle. A realidade é que o cabelo alisado está vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é incutida nas pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não somos belas.

Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria cúmplice de uma política de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade. É mais importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa condição e nosso respeito por nós mesmas.

Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa que eu era capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural. Durante anos, ainda considerava isso um problema. Ele não era natural o suficiente, crespo o necessário para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito fino. Essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era.

Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. Esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu cabelo.

Em uma cultura de dominação e antiintimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nos mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros. Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta libertadora que libera a mente e o coração.

Cabelo oprimido é um teto para o cérebro

Alice Walker

















Como muitos de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade, há muitas luas. Eu me sentava nessas mesmas cadeiras (às vezes ainda com o pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. Eu ouvia dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. Acho que sentia que ia voltar para falar deste lado do pódio. Acho que naquele tempo, quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava no que diria a vocês, hoje.
Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das mulheres. Nem sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em minhas palavras a preocupação por alguns desses assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se preocupem com o estado dos seus cabelos neste momento. Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todos.
Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.
Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em saber, o crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. Ainda um pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos períodos, quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo nível de personalidade.
Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande família, e da maioria dos amigos. Era como se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.
Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso neste mundo. No relacionamento com a família e os antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito); no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim; no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a Terra c minha adoração do Universo. O que mais então eu devia fazer? Por que, quando eu meditava e procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que eu costumava trilhar, estivesse selado?
Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.
Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra. Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças!
Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra.
Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de crescer. A jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando – uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos desenhos criados por ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as “extensões”, coma eram chamadas as tranças. Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender. É claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas vidas.
Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei o conhecimento com suas características naturais. Descobri que era flexível, macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças girando para todos os lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! Vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava dele.
Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. Meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o tráfego – um pouco parecido com as listras das zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão – que o universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza própria. Lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros – desde o tempo de minha mãe – que faziam trabalho missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam, controlavam. Agora, mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para relatar as travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado. Deitar de costas, na posição missionária, não o interessava. Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a raiz, outra “solução” missionária, também não o interessava. Ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas isso era tudo.
Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus adicional, compreender Bob Marley como o místico que suas músicas diziam que era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade inquieta, eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo.
Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer.


Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman College, Atlanta.




O texto faz parte do livro Vivendo pela Palavra de Alice Walker.

Vivendo de amor

bell hooks




















O amor cura.


Nossa recuperação está no ato e na arte de amar. Meu trecho favorito do Evangelho segundo São João é o que diz: "Aquele que não ama ainda está morto".Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.Não tem sido simples para as pessoas negras desse país entenderem o que é amar. M. Scott Peck define o amor como "a vontade de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa", sugerindo que o amor é ao mesmo tempo "uma intenção e uma ação". Expressamos amor através da união do sentimento e da ação. Se considerarmos a experiência do povo negro a partir dessa definição, é possível entender porque historicamente muitos se sentiram frustrados como amantes.O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar.Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, "feridos até o coração", e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.

O Impacto da Escravidão no Ato de Amar

Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram a partir do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já que nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que viveram em extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famílias e comunidades, não poderiam ter saído desse contexto entendendo essa coisa que a gente chama de amor. Elas sabiam, por experiência própria, que na condição de escravas seria difícil experimentar ou manter uma relação de amor.Imagino que, após o término da escravidão, muitos negros estivessem ansiosos para experimentar relações de intimidade, compromisso e paixão, fora dos limites antes estabelecidos. Mas é também possível que muitos estivessem despreparados para praticar a arte de amar. Essa talvez seja a razão pela qual muitos negros estabeleceram relações familiares espelhadas na brutalidade que conheceram na época da escravidão. Seguindo o mesmo modelo hierárquico, criaram espaços domésticos onde conflitos de poder levavam os homens a espancarem as mulheres e os adultos a baterem nas crianças como que para provar seu controle e dominação. Estavam assim se utilizando dos mesmos métodos brutais que os senhores de engenho usaram contra eles. Sabemos que sua vida não era fácil; que com a abolição da escravatura os negros não ficaram imediatamente livres para amar.Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento datado em 1845, Frederick Douglass lembra que foi incapaz de se sensibilizar com a morte de sua mãe, por ter sido impedido de manter contato com ela. A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus companheiros- o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome- fez com que se mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema necessidade. E tinham boas razões para imaginar que, caso contrário, seriam punidos. Somente em espaços de resistência cultivados com muito cuidado, podiam expressar emoções reprimidas. Então, aprenderam a seguir seus impulsos somente em situações de grande necessidade e esperar por um momento "seguro" quando seria possível expressar seus sentimentos.Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver.

Emoções Reprimidas: A Chave da Sobrevivência

A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os sentimentos era uma bobagem.Tradicionalmente, as famílias do Sul do país ensinavam as crianças ainda pequenas que era importante reprimir as emoções. Normalmente as crianças aprendiam a não chorar quando eram espancadas. Expressar os sentimentos poderia significar uma punição ainda maior. Os pais avisavam: "Não quero ver nem uma lágrima". E se a criança chorava, ameaçavam: "Se não parar, vou te dar mais uma razão para chorar." Como é possível diferenciar esse comportamento daquele do senhor de engenho que espancava seu escravo sem permitir que ele experimentasse qualquer forma de consolo, ou mesmo que tivesse um espaço para expressar sua dor? E se tantas crianças negras aprenderam desde cedo que expressar as emoções é sinal de fraqueza, como poderiam estar abertas para amar? Muitos negros têm passado essa idéia de geração a geração: se nos deixarmos levar e render pelas emoções, estaremos comprometendo nossa sobrevivência. Eles acreditam que o amor diminui nossa capacidade de desenvolver uma personalidade sólida.*Em Algum Momento Você Nos Amou?*Quando eu era criança, percebia que fora do contexto da religião e do romance, o amor era visto pelos adultos como um luxo. A luta pela sobrevivência era mais importante do que o amor. Somente as pessoas mais velhas - nossas avós e bisavós, nossos avôs e bisavôs, nossos padrinhos e madrinhas -pareciam dedicadas a arte e ao ato de amar. Elas nos aceitavam, cuidavam de nós, nos davam atenção e principalmente, afirmavam nossa necessidade de experimentar prazer e felicidade. Eram carinhosas e o demonstravam fisicamente. Nossos pais e sua geração, que só pensavam em subir na vida, geralmente passavam a impressão de que o amor é uma perda de tempo, um sentimento ou um ato que os impedia de lidar com coisas mais importantes.Quando eu dava aulas sobre o livro Sula, de Toni Morrison, reparava que minhas alunas se identificavam com um trecho no qual Hannah, uma mulher negra já adulta, pergunta a sua mãe, Eva: "Em algum momento você nos amou?" E Eva responde bruscamente: "Como é que você tem coragem de me fazer essa pergunta? Você não tá aí cheia de saúde? Como não consegue enxergar?" Hannah não se satisfaz com a resposta, pois sabe que a mãe sempre procurou suprir suas necessidades materiais. Ela está interessada num outro nível de cuidado, de carinho e atenção. E diz para Eva: "Alguma vez você brincou com a gente?" Mais uma vez, Eva responde como se a pergunta fosse totalmente ridícula: Brincar? Ninguém brincava em 1895. Só porque agora as coisas são fáceis, você acha que sempre foram assim? Em 1895 não era nada fácil. Era muito duro. Os negros morriam como moscas... Cê acha que eu ia ficar brincando com crianças? O que é que iam pensar de mim?A resposta de Eva mostra que a luta pela sobrevivência não significava somente a forma mais importante de carinho, mas estava acima de tudo. Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é sinônimo de amar. Mas é claro que mesmo quando se possui privilégios materiais, o amor pode estar ausente.E num contexto de pobreza, quando a luta pela sobrevivência se faz necessária, é possível encontrar espaços para amar e brincar, para se expressar criatividade, para se receber carinho e atenção. Aquele tipo de carinho que alimenta corações, mentes e também estômagos. No nosso processo de resistência coletiva é tão importante atender as necessidades emocionais quanto materiais.Não é por acaso que o diálogo sobre o amor no livro Sula se dá entre duas mulheres negras, entre mãe e filha. Sua relação simboliza uma herança que será reproduzida em outras gerações. Na verdade Eva não alimenta o crescimento espiritual de Hannah, e Hannah não alimenta o crescimento espiritual de sua filha, Sula. Mas Eva simboliza um modelo de mulher negra "forte", de acordo com seu estilo de vida, por sua capacidade de reprimir emoções e garantir sua segurança material. Essa é uma forma prática de se definir nossas necessidades, como naquela canção de Tina Turner: "O que é que o amor tem a ver com isso”

Se Conhecêssemos o Amor

O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente.Geralmente enfatizam nossa capacidade de "sobreviver" apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor.Para conhecermos o amor, primeiro precisamos aprender a responder as nossas necessidades emocionais. Isso pode significar um novo aprendizado, pois fomos condicionadas a achar que essas necessidades não eram importantes. Por exemplo, no seu livro, O Hábito da Sobrevivência: Estratégias de Vida das Mulheres Negras, Kesho Scott relata uma experiência importante que a ensinou a sobreviver: Medindo treze anos, permaneci parada em frente a porta da sala. Minhas roupas estavam molhadas. Meus cabelos pingando. Estava chorando, chocada, precisando do colo da minha mãe. Ela me olhou de cima a baixo, devagar, levantou-se do sofá e caminhou ao meu encontro com o corpo carregado de críticas. Parada, com as mãos na cintura, sua sombra caindo sobre meu rosto, perguntou sem conseguir esconder a raiva: "O que aconteceu?" Hesitei como se surpresa por sua raiva e respondi: "Elas colocaram minha cabeça na privada. Disseram que não posso nadar com elas". "Elas" eram oito meninas brancas da escola. Tentei abraçá-la, mas ela se afastou bruscamente dizendo: "Que inferno! Pegue seu casaco e vamos embora".Naquele momento Keshno estava aprendendo que suas necessidades emocionais não eram importantes. Logo depois ela escreve: "Minha mãe me ensinou uma valiosa lição naquele dia. Aprendi que deveria lutar contra a discriminação racial e sexual". É claro que essa é uma lição importante para as mulheres negras. Mas Keshno estava também aprendendo uma lição dolorosa, ao sentir que não merecia ser consolada após uma experiência traumática, como se não devesse nem mesmo esperar por isso, como se suas necessidades individuais não fossem tão importantes quanto a luta de resistência coletiva contra o racismo e o sexismo. Imaginem como essa história seria diferente se, ao entrar na sala tão abalada, Keshno tivesse recebido o consolo de sua mãe, e se primeiro sua mãe a ajudasse a se pentear e arrumar, para depois então explicar a necessidade de confrontar (talvez não naquele momento, se Keshno não estivesse preparada emocionalmente para o confronto) as alunas brancas que a atacaram. Dessa forma Keshno teria aprendido, aos treze anos, que sua saúde emocional era tão importante quanto o movimento contra o racismo e o sexismo - que na verdade essas duas experiências estavam interligadas.Muitas de nós, mulheres negras, aprendemos a negar nossas necessidades mais íntimas, enquanto Desenvolvíamos nossa capacidade de confrontar a vida pública. É por isso que constantemente parecemos ter sucesso no trabalho, mas não na vida privada. Vocês entendem o que estou querendo dizer. Quando vemos uma mulher negra aparentemente segura de si, de seu trabalho, é bem provável que se formos visitá-la sem avisar, com exceção da sala, todo o resto da casa vai estar a maior bagunça, como se tivesse passado um furacão. Creio que esse caos representa uma reflexão de seu interior, da falta de cuidado consigo própria. A partir do momento que acreditarmos, de preferência desde crianças, que nossa saúde emocional é importante, poderemos suprir nossas outras necessidades.Muitas vezes confundimos o reconhecimento de nossas emoções com o desejo de se manter em controle. Quando ignoramos nossas reais necessidades, a tendência é nos fragilizarmos, nos tornarmos vulneráveis e emocionalmente instáveis. As mulheres negras se esforçam muito para esconder essa situação.Voltando a falar da mãe de Keshno, é provável que a dor de sua filha tenha trazido recordações de suas próprias feridas, nunca reveladas. Será que assumiu aquela atitude crítica, dura, ou mesmo cruel, para não se expor, chorar, e deixar de ser "uma mulher negra forte"? Mas se tivesse chorado, sua filha saberia que ela se identificava com aquela dor, que seria possível falar sobre o assunto, que não precisaria guardar essa dor.Essa atitude representa o que muitas de nós presenciamos em circunstâncias semelhantes - ela mantinha o controle. Até mesmo sua postura física significava que mantinha o domínio da situação. Claro que, como mulher negra, essa mãe queria que sua presença fosse mais poderosa do que as meninas brancas. Um modelo de mãe que sabe como apoiar sua filha numa situação de sofrimento é representado no romance Sassafrass, Cypress e Indigo, de Ntozake Shange. Esse livro retrata mulheres negras como personagens fortalecidos pelo amor de sua mãe. Mesmo quando não concorda com certas opções de suas filhas, essa mãe as trata com respeito e oferece consolo. Esse é um trecho de uma carta que ela escreve para Sassafrass, que passa por dificuldades e quer voltar para casa. A carta começa assim: "Claro que você pode voltar pra casa! Aconteça o que acontecer, nunca vou deixar de te amar". Primeiro ela demonstra seu amor, depois aconselha, e volta a expressar seu amor: Você e Cypress me deixam louca com seu estilo de vida alternativo. Vocês precisam parar de nadar contra a corrente. Você sabe o que quero dizer... Lembre-se disso. Volte para casa e vamos resolver essa situação. Você terá muitas opções e ninguém vai te chatear ou te enganar. Nada como um dia depois do outro. Você acorda. Você come, vai trabalhar, volta pra casa, come outra vez, descansa, e vai dormir. Nossa situação melhorou. Continuo me perguntando onde foi que errei. Mas no fundo sinto que não estou errada. Estou certa. O mundo está de cabeça pra baixo e está tentando enlouquecer as minhas filhas. Agora chega. Eu te amo muito. Você está se tornando uma mulher adulta e sei o que isso significa. Volte para casa. Sei que vai descobrir algo mais sobre você. Com amor, Mamãe.

Amando Aquilo Que Vemos

A arte e a prática de amar começam com nossa capacidade de nos conhecer e afirmar. É por isso que tantos livros de auto-ajuda dizem que devemos mirar-nos num espelho e conversar com nossas próprias imagens. Tenho percebido que às vezes não amo a imagem ali refletida. Eu a inspeciono. Desde que acordo e me vejo no espelho, começo a me analisar, não com a intenção de me afirmar, mas de me criticar. Isso era comum lá em casa. Quando eu e minhas cinco irmãs descíamos as escadas em direção àquele território ocupado por meu pai, minha mãe e meus irmãos, entrávamos no mundo da "crítica". Tudo era observado e tudo estava errado conosco. Raramente uma de nós era elogiada.Quando substituo a crítica negativa pelo reconhecimento positivo, sinto-me mais forte para começar o dia. A afirmação é o primeiro passo para cultivarmos nosso amor interior. Uso a expressão "amor interior" e não "amor próprio" porque a palavra "próprio" é geralmente usada para definir nossa posição em relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida interior é importante.A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que outros entendam a importância de sua vida interior. Se passarmos a explorar nossa vida interior, encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. E se nos permitirmos sentir, afirmaremos nosso direito de amar interiormente. A partir do momento em que conheço meus sentimentos, posso também conhecer e definir aquelas necessidades que só serão preenchidas em comunhão ou contato com outras pessoas.Onde está o amor, quando uma mulher negra se olha e diz: "Vejo uma pessoa feia, escura demais, gorda demais, medrosa demais - que não merece ser amada, porque nem eu gosto do que vejo" Ou talvez: "Vejo uma pessoa tão ferida, que é pura dor, e não quero nem olhar pra ela porque não sei o que fazer com essa dor". Aí o amor está ausente. Para que esteja presente é preciso que essa mulher decida se olhar internamente, sem culpa e sem censura.E ao definir o que vê, talvez perceba que seu interior merece ou precisa de amor. Nunca ouvi uma mulher negra dizer num grupo de apoio que não precisa de amor. Ela pode até querer esconder essa necessidade, mas não é preciso muito tempo de análise para que reconheça isso. Se perguntarmos diretamente a uma mulher negra se ela precisa de amor, a resposta provavelmente será positiva. Para nos amarmos interiormente, precisamos antes de tudo prestar atenção, reconhecer e aceitar essa necessidade. Se acreditarmos que não seremos punidas por reconhecermos quem somos ou o que sentimos, poderemos entender melhor nossas dificuldades.Normalmente entrevisto a mim mesma e acho que outras mulheres devem fazer o mesmo. Às vezes é difícil entrar em contato com meus sentimentos, mas ao me fazer uma pergunta, geralmente encontro a resposta.Algumas vezes a gente se olha e vê tanta confusão, tanta dor, que não sabemos o que fazer. Então precisamos procurar ajuda. Às vezes ligo para meus amigos e digo: "Não consigo entender o que sinto e não sei o que fazer, você pode me ajudar?" Muitas mulheres negras não têm coragem de pedir ajuda, pois isso significaria um sinal de fraqueza. Precisamos nos livrar desse condicionamento. Ter capacidade de pedir ajuda significa que temos poder. Cada vez que buscamos ajuda nosso poder aumenta, ao invés de diminuir. Experimente. Geralmente buscamos ajuda em momentos de crise. Mas podemos evitar a crise se reconhecermos nossa dificuldade em lidar com uma determinada situação. Para as mulheres negras acostumadas a manter o controle das situações, pedir ajuda pode significar a prática do amor, da confiança, reconhecendo que não precisamos resolver tudo sozinhas. A prática de se amar interiormente nos revela o que o nosso espírito necessita, além de nos ajudar a entender melhor as necessidades das outras pessoas.As mulheres negras que escolhem ( e aqui enfatizo a palavra "escolhem") praticar a arte e o ato de amar, devem dedicar tempo e energia expressando seu amor para outras pessoas negras, conhecidas ou não. Numa sociedade racista, capitalista e patriarcal, os negros não recebem muito amor. E é importante para nós que estamos passando por um processo de descolonização, perceber como outras pessoas negras respondem ao sentir nosso carinho e amor. Outro dia minha amiga T. me contou que faz questão de visitar e conversar com o senhor de idade que trabalha numa loja perto de sua casa. E recentemente ele expressou sua gratidão pelo carinho que recebe dela. Anos atrás, quando ela passava por um processo de autodestruição, não tinha "vontade" de mostrar seu carinho. Hoje ela passa para ele o mesmo carinho que espera receber de outras pessoas.Quando eu era criança algumas mulheres negras me amaram de forma "incondicional". Assim aprendi que o amor não precisa ser conquistado. Elas me ensinaram que eu merecia ser amada; seu carinho nutriu meu crescimento espiritual.Muitos negros, e especialmente as mulheres negras, se acostumaram a não ser amados e a se proteger da dor que isso causa, agindo como se somente as pessoas brancas ou outros ingênuos esperassem receber amor. Uma vez disse para algumas mulheres negras que gostaria de viver em um mundo onde existisse amor, onde pudesse amar e ser amada. Depois disso elas passaram a rir de mim sempre que nos encontrávamos. Para que esse mundo possa existir é preciso acabar com o racismo e todas as formas de dominação. Se escolho dedicar minha vida à luta contra a opressão, estou ajudando a transformar o mundo no lugar onde gostaria de viver.

O Amor Cura

O "Poema da Mulher" de Nikki Giovanni foi importante para que eu percebesse o processo de autodestruição das mulheres negras. Publicado no livro, A Mulher Negra, editado por Toni Cade Bambara, esse poema termina assim: "olhe para aquela que teve toda sua vida marcada pela infelicidade porque é a única verdade que conheço". Nesse poema, Giovanni não apenas sugere que as mulheres negras foram socializadas para cuidar dos outros e ignorar suas necessidades, como também mostra como a autodestruição nos faz abandonar aqueles que nos querem. A mulher negra diz: "Como você se atreve a me querer - isso não faz sentido - porque se eu sou uma merda, você deve ser pior ainda".Esse poema foi escrito em 1968. Algumas décadas depois, as mulheres negras continuam lutando para reconhecer sua dor e encontrar formas de curá-la. Aprender a amar é uma forma de encontrar a cura. A idéia de que o amor significa a nossa expansão no sentido de nutrir nosso crescimento espiritual ou o de outra pessoa, me ajuda a crescer por afirmar que o amor é uma ação. Essa definição é importante para os negros porque não enfatiza o aspecto material do nosso bem-estar. Ao mesmo tempo que conhecemos nossas necessidades materiais, também precisamos atender às nossas necessidades emocionais. Gosto muito daquele trecho da bíblia, nos "Provérbios", que diz: "Um jantar de ervas, onde existe amor, é melhor que uma bandeja de prata cheia de ódio".Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.


Por um feminismo Afro-latino-americano

Lélia Gonzalez

















Neste ano de 1998, Brasil, o país com a maior população negra das Américas, comemora o centenário da lei que estabeleceu o fim da escravização neste país. As celebrações se estendem por todo território nacional, promovidas por inúmeras instituições de caráter publico e privado, que festejam os “cem anos da abolição”.
Porém, para o Movimento Negro, o momento é muito mais de reflexão do que de celebração. Reflexão porque o texto da lei de 13 de maio de 1988 (conhecida como Lei Áurea), simplesmente declarou como abolida a escravização, revogando todas as disposições contrarias e... nada mais. Para nós, mulheres negras e homens negros, nossa luta pela liberdade começou muito antes desse ato de formalidade jurídica e se estende até hoje. Nosso empenho, portanto, se dá no sentido de que a sociedade brasileira ao refletir sobre a situação do seguimento negro que dela faz parte (daí a importância de ocupar todos os espaços possíveis para que isso suceda) possa voltar-se sobre si mesma e reconhecer nas suas contradições internas as profundas desigualdades raciais que a caracterizam. Neste sentido, as outras sociedades que também compõem essa região, neste continente chamado America Latina, quase não diferem da sociedade brasileira.
E este trabalho, como reflexão de uma das contradições internas do feminismo latino-americano, pretende ser, com suas evidentes limitações, uma modesta contribuição para o seu avanço (depois de tudo, sou feminista). Ao evidenciar a ênfase direcionada a dimensão racial (quando se trata da percepção e do entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior do movimento, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão. Por outro lado, baseada nas minhas experiências de mulher negra, tratarei de evidenciar as iniciativas de aproximação, de solidariedade e respeito pelas diferenças por parte de companheiras brancas efetivamente comprometidas com a causa feminina. A essa mulheres- exceção eu as chamo de irmãs.

Feminismo e Racismo
É inegável que o feminismo como teoria e pratica vem desempenhando um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, e à medida que, ao apresentar novas perguntas, não somente estimulou a formação de grupos e redes, também desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mulher. Ao centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o encaminhamento das nossas lutas como movimento. Ao demonstrar, por exemplo, o caráter político do mundo privado, desencadeou todo um debate público em que surgiu a tematização de questões totalmente novas – sexualidade, violência, direitos reprodutivos, etc. – que se revelaram articulados as relações tradicionais de dominação/submissão. Ao propor a discussão sobre sexualidade, o feminismo estimulou a conquista de espaços por parte de homossexuais de ambos os sexos, discriminados pela sua orientação sexual (Vargas). O extremismo estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo alternativo de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento, o mundo não foi mais o mesmo.
Mas, apesar das suas contribuições fundamentais para a discussão da discriminação pela orientação sexual, não aconteceu o mesmo com outros tipos de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial. Aqui, se nos reportamos ao feminismo norte-americano, a relação foi inversa; ele foi consequência de importante contribuições do movimento negro: “ A Luta dos sessenta... Sem a Irmandade Negra, não haveria existido irmandade das Mulheres (Sister Hood); sem Poder Negro(Black Power) y Orgulho Negro(Black Pride), não haveria existido Poder Gay e Orgulho Gay” (David Edgar). E a feminista Leslie Cagan afirma: “ O fato de que o movimento pelos Direitos Civis tenha quebrado as propósitos sobre a liberdade e a igualdade em America, nos abriu espaço para questionar a realidade da nossa liberdade como mulheres”.
Mas o que geralmente se constata, na leitura dos textos e da prática feminista, são referências formais que denotam uma espécie de esquecimento da questão racial. Temo um exemplo de definição do feminismo: consiste na “resistência das mulheres em aceitar papéis, situações sociais, econômicas, políticas, ideológicas e características psicológicas que tenham como fundamento a existência de uma hierarquia entre homens e mulheres, a partir da qual a mulher é discriminada” (Astelarra). Bastaria substituir os termos homens e mulheres por brancos e negros (ou índios), respectivamente, para ter uma excelente definição de racismo.
Exatamente porque tanto o racismo como o feminismo partem da diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por parte do feminismo? A resposta, na nossa opinião, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos nós, se encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neo-colonialista da realidade.
Vale a pena retomar aqui duas categorias do pensamento lacaniano que ajuda, a nossa reflexão. Intimamente articuladas, as categorias de infante e de sujeito-suposto-saber nos levam ao tema da alienação. A primeira designa a aquele que não é sujeito do seu próprio discurso, a medida em que é falado pelos outros. O conceito de infante se constitui a partir de uma analise da formação psíquica da criança que, ao ser falado pelos adultos na terceira pessoa, é, consequentemente, excluída, ignorada, colocada como ausente apesar da sua presença; reproduz então esse discurso e fala em si em terceira pessoa (até o momento em que aprende a trocar os pronomes pessoais). Da mesma forma, nós mulheres e não-brancas, fomos “faladas”, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao impormos um lugar inferior no interior da sua hierarquia (apoiadas nas nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa humanidade justamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não só do nosso próprio discurso, senão da nossa própria historia. E desnecessário dizer que com todas essas características, nos estamos referindo ao sistema patriarcal-racista. Consequentemente, o feminismo coerente consigo mesmo não pode dar ênfase a dimensão racial. Se assim o fizera, estaria contraditoriamente aceitando e reproduzindo a infantilização desse sistema, e isto é alienação.
A categoria de sujeito-suposto-saber, refere-se as identificações imaginarias com determinadas figuras, para as quais se atribui um saber que elas não possuem (mãe, pai, psicalanista, professor, etc.). E aqui nos reportamos a análise de um Frantz Fannon e de um Alberto Memmi, que descrevem a psicologia do colonizado frente a um colonizador. Em nossa opinião, a categoria de sujeito-suposto-saber enriquece ainda mais o entendimento dos mecanismos psíquicos inconscientes que se explicam na superioridade que o colonizado atribui ao colonizador. Nesse sentido, o eurocentrismo e seu efeito neo-colonialista acima mencionados também são formas alienadas de uma teoria e de uma prática que se percebem como liberadora.
Por tudo isso, o feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da realidade que é de grande importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades dessa região. Tratar, por exemplo, da divisão sexual do trabalho sem articulá-la com seu correspondente em nível racial, é recair numa espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e branco. Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não ser brancas. Concordamos plenamente com Jenny Bourne, quando afirma: “Eu vejo o anti-racismo como algo que não está fora do Movimento de Mulheres senão como algo intrínseco aos melhores princípios feministas”.
Mas esse olhar que não vê a dimensão racial, essa análise e essa prática que a “esquecem”, não são características que se fazem evidentes apenas no feminismo latino-americano. Como veremos em seguida, a questão racial na região tem sido ocultada no interior das suas sociedades hierárquicas.

A questão racial na América Latina

Cabe aqui um mínimo de reflexão histórica para poder ter uma idéia deste processo na região. Principalmente nos países de colonização ibérica.
Em primeiro lugar, não se pode esquecer que a formação histórica de Espanha e Portugal se fez a partir da luta de muitos séculos contra os mouros, que invadiram a Península Ibérica no ano de 711. Ainda mais, a guerra entre mouros e cristãos (ainda lembrada em nossas festas populares) não teve na dimensão religiosa a sua única força propulsora. Constantemente silenciada, a dimensão racial teve um importante papel ideológico na nas lutas da Reconquista. Na realidade, os mouros invasores eram predominantemente negros. Alem disso, as duas ultimas dinastias do seu império - a dos “Almorávidas e a dos Almoadas”- provinham de Africa Ocidental (Chandler). Pelo exposto, queremos dizer que os espanhóis e os portugueses adquiriram uma solida experiência com respeito a forma de articulação das relações raciais,
Em segundo lugar, as sociedades ibéricas se estruturaram de maneira altamente hierarquizada, com muitas castas sociais diferenciadas e complementarias. A força da hierarquia era tal que se explicitava até nas formas nominais de tratamento, transformadas em lei pelo rei de Portugal e de Espanha em 1597. Desnecessário dizer que, neste tipo de estrutura, onde tudo e todos tem um lugar determinado, não há espaço para a igualdade, principalmente para grupos étnicos diferentes, como mouros e judeus, sujeitos a um violento controle social e político (Da Matta).
Herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual), assim como das técnicas jurídicas e administrativas das metrópoles ibéricas, as sociedades latino-americanas não podiam deixar de se caracterizarem como hierárquicas. Racialmente estratificadas, apresentam uma espécie de continuum de cor que se manifesta num verdadeiro arco-íris classificatório (no Brasil, por exemplo, existem mais de cem denominações para designar a cor das pessoas). Neste quadro, se torne desnecessária a segregação entres mestiços, indígenas e negros, pois as hierarquias garantem a superioridade dos brancos como grupo dominante.
Desse modo, a afirmação de que somos todos iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer( de “limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a conseqüente negação da própria raça e da própria cultura.
Não são poucos os países latino-americanos que desde a sua independência aboliram o uso de indicadores raciais nos seus censos e em outros documentos. Alguns deles reabilitaram ao indígena como símbolo místico da resistência contra a agressão colonial e neocolonial, apesar de, ao mesmo tempo, manter a subordinação da população indígena. Em relação aos negros, são abundantes os estudos sobre a sua condição durante o regime escravocrata. Porem historiadores e sociólogos silenciam sua situação desde a abolição da escravização até os dias de hoje, estabelecendo uma pratica que faz invisível a este segmento social. O argumento utilizado por alguns cientistas sociais consiste na afirmação de que a ausência da variável racial nas suas análises se deve ao fato de que os negros foram contidos no interior da sociedade abraçada em condições de relativa igualdade com outros grupos raciais(Andrews).
Esta postura tem muito mais a ver com estudos de língua espanhola, no momento em que o Brasil se coloca quase como exceção dentro desse quadro; sua literatura cientifica sobre o negro na sociedade atual é bastante significativa.
Pelo exposto, não é difícil concluir a existência de grandes obstáculos para o estudo e encaminhamento das relações raciais na America Latina, em base a suas configurações regionais e variações internas, para a comparação com outras sociedades multirraciais, fora do continente. Na verdade, esse silencio ruidoso sobre as contradições raciais se fundamenta, modernamente, num dos mais eficazes mitos de dominação ideológica: o mito da democracia racial.
Na seqüência da suposta igualdade de todos perante a lei, ele afirma a existência de uma grande harmonia racial... sempre que se encontrem sob o escudo do grupo branco dominante; o que revela sua articulação com a ideologia do branqueamento. Em nossa opinião, quem melhor sintetizou esse tipo de dominação racial foi um humorista brasileiro ao afirmar: “no Brasil não existe racismo porque os negros reconhecem o seu lugar”. (Millor Fernandes). Vale notificar que mesmo as esquerdas absorveram a tese da “democracia racial”, a medida que nas suas análises sobre nossa realidade social jamais conseguiram vislumbrar qualquer coisa mais alem das contradições de classe.
Metodologicamente mecanicistas ( por eurocêntricas), acabaram por tornarem-se cúmplices de uma dominação que pretendiam combater. No Brasil, este tipo de perspectiva começou a sofrer uma reformulação com a volta dos exilados que haviam combatido a ditadura militar, no inicio dos anos oitenta. Isto porque muitos deles (vistos como brancos no Brasil) forma objeto de discriminação racial no exterior.
Apesar disso, somente em um pais do continente encontramos a grande e única exceção em relação a uma ação concreta no sentido de abolir as desigualdades raciais, étnicas e culturais. Trata-se de um pais geograficamente pequeno, mas gigantesco na busca do encontro consigo mesmo: Nicarágua. Em setembro de 1987, a assembléia Nacional aprovou y promulgou o Estatuto de Autonomia das Regiões da Costa Atlântica de Nicarágua. Nelas encontram-se uma população de trezentos mil habitantes, divididos em seis etnias caracterizadas incluso por suas diferenças lingüísticas: 182 mil mestiços, 75 mil misquitos, 26 mil creoles(negros), 9 mil sumus, 1750 garífunas(negros) e 850 ramas. Composto de seis títulos e cinco artigos, o Estatuto de Autonomia implica em um novo reordenamento político, econômico, social e cultural que responde as reivindicações de participação das comunidades costeiras. Mais do que garantir a eleição das autoridades locais e regionais, o Estatuto assegura a participação comunitária na definição dos projetos que beneficiam a região e reconhece o direito de propriedade sobre as terras comunais. Por outro lado, não só garante a igualdade absoluta das etnias senão também reconhece seus direitos religiosos e lingüísticos, repudiando todo tipo de discriminação. Um dos seus grandes efeitos foi o repatriamento de 19 mil indígenas que haviam abandonado o país. Coroação de um longo processo em que se acumularam erros e acertos, o Estatuto de Autonomia é uma das grandes conquistas de um povo que luta “por construir uma nação nova, multi-étnica, pluricultural e multilíngüe baseada na democracia, pluralismo, anti-imperialismo e a eliminação da exploração social e opressão em todas as suas formas”.
É importante insistir que no quadro das profundas desigualdades raciais existentes no continente, se inscreve, e muito bem articulada, a desigualdade sexual. Trata-se de uma discriminação em dobro para com as mulheres não-brancas da região: as amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexual – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Justamente porque este sistema transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter triplo, dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na sua grande maioria, do proletariado afrolatinoamericano.

Por um feminismo afro-latino-americano
é Virginia Vargas V. quem nos diz: “ a presença das mulheres no cenário social e um feto inquestionável nos últimos anos, buscando novas soluções frente aos problemas que lhes impõe uma ordem social, política e econômica que historicamente as marginalizou. Nesta presença, a crise econômica, política, social e cultural(...) tem sido um elemento desencadeante que acelerou processos que vinham gerando-se. Em efeito, se por um lado a crise acentuou e evidenciou o esgotamento de um modelo de desenvolvimento do capitalismo dependente, por outro lado, deixou explicito como seus efeitos são recebidos diferenciadamente em vastos setores sociais, de acordo as contradições especificas nas quais se encontram imersos, alentando desse modo o surgimento de novos campos de conflito e novos atores sociais. Assim, no terreno das relações sociais, o efeito da crise foi o de devolver-nos uma visão muito mais complexa e heterogênea da dinâmica social, econômica e política. Nesta complexidade na qual estão localizados o surgimento e o reconhecimento de novos movimentos sociais entre eles o de mulheres, que avançaram desde as suas contradições especificas a um profundo questionamento `a lógica estrutural da sociedade(Castells) e contem, potencialmente, uma visão alternativa da sociedade”.
Ao caracterizar distintas modalidades de participação, ela aponta três vertentes, diferenciadas por uma expressão, no interior do movimento: popular, político-partidária e feminista. E é justamente na popular que vamos encontrar maior participação de amefricanas e ameríndias que, preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, buscam organizar-se coletivamente; por outro lado, sua presença principalmente no mercado informal de trabalho as remete a novas reivindicações. Dada sua posição social, que se articula com sua discriminação racial e sexual, são elas que sofrem mais brutalmente os efeitos da crise. Se pensarmos no tipo de modelo econômico adotado e no tipo de modernização que dela flui - conservadora e excludente, por seus efeitos de concentração de renda e de benefícios sociais – não é difícil concluir a situação dessas mulheres, como no caso do Brasil, no momento da crise (Oliveira, Porcaro e Araujo).
Nesta perspectiva, não podemos desconhecer o importante papel dos Movimentos Étnicos (ME), como movimentos sociais. Por um lado, o movimento indígena (MI), que se fortalece cada vez mais na América do Sul (Bolívia, Brasil, Peru, Colômbia, Equador) e Central( Guatemala, Panamá e Nicarágua, como já vimos), não só propõe novas discussões sobre as estruturas sociais tradicionais, senão que busca a reconstrução da sua identidade ameríndia e o resgate da sua própria história. Por outro lado o Movimento Negro(MN)- e falemos do caso brasileiro ao explicitar a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder, desmascara as estruturas de dominação de uma sociedade e de um estado que vêem como natural o fato de que quatro quintos da forca de trabalho negra sejam mantidas aprisionadas em uma espécie de cinturão socioeconômico que lhes “oferece e oportunidade” de trabalho manual e não qualificado. Não é necessário dizer que para o mesmo trabalho exercido por brancos, os rendimentos são sempre menores para trabalhadores negros de qualquer categoria profissional (principalmente nas de maior qualificação). Enquanto isso, a apropriação lucrativa da produção cultural afro-brasileira também é vista como “natural”.
Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região -assim como para as ameríndias- a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. A experiência histórica da escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem crianças, adultos ou velhos. E foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação. A mesma reflexão é válida para as comunidades indígenas. Por isso, nossa presença nos ME é bastante visível; aí nós amefricanas e ameríndias temos participação ativa e em muitos casos somos protagonistas.
Mas é exatamente essa participação que nos leva a consciência da discriminação sexual. Nossos companheiros de movimentos reproduzem as praticas sexistas do patriarcado dominante e tratam de excluir-nos dos espaços de decisão do movimento. E é justamente por essa razão que buscamos o MM, a teoria e a pratica feministas, acreditando aí encontrar uma solidariedade tão importante como a racial: a irmandade. Mas o que efetivamente encontramos são as praticas de exclusão e dominação racista que tratamos na primeira sessão deste trabalho. Somos invisíveis nas três vertentes do MM; inclusive naquela em que a nossa presença é maior, somos descoloridas ou desracializadas, e colocadas na categoria popular ( os poucos textos que incluem a dimensão racial só confirmam a regra geral). Um exemplo ilustrativo: duas famílias pobres –uma negra e outra branca- cuja renda mensal é de 180 dólares( que corresponde a três salários mínimos atualmente no Brasil); a desigualdade se faz evidente no fato de que a taxa da atividade da família negra é maior que da branca( Oliveira, Porcaro e Araujo). Por aí se explica a nossa escassa presença nas outras duas vertentes.
Pelo exposto, não é difícil compreender que nossa alternativa em termos de MM foi a de organizar-nos como grupos étnicos. E, na medida em que lutamos em duas frentes, estamos contribuindo para o avanço tanto dos ME como do MM (vice-versa, evidentemente). No Brasil, já em 1975, com a ocasião do encontro histórico das latinas que marcaria o inicio do MM no Rio de Janeiro, as americanas se fizeram presentes e distribuíram um manifesto que evidenciava a exploração econômico-racial sexual e o consequente trata”degradante, sujo e sem respeito” de que somos objeto. Seu conteúdo não é muito diferente do Manifesto da Mulher Negra Peruana no dia internacional da mulher em 1987, assinado por duas organizações do MN deste país: Linha de Ação Feminina do Instituto Afro-peruano e Grupo de Mulheres do Movimento Negro “Francisco Congo”. Denunciando sua situação de discriminadas entre os discriminados, elas afirmam: “ nos moldaram uma imagem perfeita em tudo que se refere a atividades domesticas, artísticas, servis, nos consideraram “expertas no sexo”. É dessa forma que se alimentou o preconceito de que a mulher negra só serve para esses menestréis. Vale a pena notar que os doze anos de existência dos dois documentos nada significam frente a quase cinco séculos de exploração que ambos denunciam. Além disso, se observa que a situação das amefricanas dos dois países é praticamente a mesma, e principalmente os pontos de vista. Um dito popular brasileiro sintetiza essa situação ao afirmar: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. Que se atenda aos papéis atribuídos as amefricanas (preta e mulata); abolida sua humanidade, elas são vistas como corpos animalizados: por um lado são os “burros de carga”(do qual as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a socioeconômica se faz aliada a super-exploração sexual das mulheres amefricanas.
Nos dois grupos de amefricanas do Peru se confirma uma pratica que também é comum a nós: é a partir do MN que nos organizamos, e não do MM. No caso da dissolução de algum grupo, a tendência é continuar a militância dentro do MN, onde, apesar dos pesares, a nossa rebeldia e espírito crítico se dão num clima de maior familiaridade histórica e cultural. Já no MM, essas nossas manifestações muitas vezes foram caracterizadas como antifeministas e “racistas às avessas” (o que pressupõe um “racismo as direitas”, ou seja, legitimo); daí nosso desencontros e ressentimentos. De qualquer modo, os grupos amefricanos de mulheres foram se organizando pelo país, principalmente nos anos oitenta. Realizamos também nossos encontros regionais, e neste ano teremos o Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras. Enquanto isso nossas irmãs ameríndias também se organizam dentro da união das nações indígenas, a expressão máxima do MI no nosso país. Neste processo, é importante ressaltar que as relações dentro do MM não estão feitas só de desencontros e ressentimentos com as latinas. Já nos anos setenta, umas poucas se aproximaram de nós em um efetivo intercambio de experiências, consequente no seu igualitarismo. O entendimento e a solidariedade se ampliaram nos anos oitenta, graças as próprias modificações ideológicas e de conduta dentro do MM: um novo feminismo se delineava nos nossos horizontes, aumentando nossas esperanças pela ampliação das suas perspectivas. A criação de novas redes como o Taller de Mulheres das Américas (que prioriza a luta contra o racismo e o patriarcalismo numa perspectiva anti-imperialista) e DAWN/MUDAR, são exemplos de uma nova forma de olhar feminista, luminoso e iluminado por ser inclusivo, aberto a participação de mulheres étnica e culturalmente diferentes. E Nairóbi foi o marco desta mudança, deste aprofundamento, deste encontro do feminismo consigo mesmo.
Prova disso fora, as experiências muito fortes que tivemos o privilegio de compartilhar. A primeira em novembro de 1987, no II Encontro do Taller de Mulheres das Américas na cidade do Panamá; ali as análises e discussões terminaram por derrubar barreiras – no reconhecimento do racismo pelas feministas – e preconceitos antifeministas por parte das ameríndias e amefricanas dos setores populares. A segunda foi no mês seguinte, em La Paz, no encontro regional de DAWN/MUDAR; presentes as mulheres mais representativas do feminismo latino-americano, tanto por sua produção teórica como por sua prática efetiva. E uma só presença amefricana argumentou durante todo o encontro sobre as contradições já sinalizadas neste trabalho. Foi realmente uma experiência extraordinária para mim, frente aos testemunhos francos e honestos por parte das latinas ali presentes, frente a questão racial. Sai dali revivida, confiante de que uma nova era se abria para todas nós, mulheres da região. Mais do que nunca, meu feminismo se sentiu fortalecido. E o titulo deste trabalho foi inspirado nessa experiência. Por isso que eu o dedico a Neuma, Leo, Carmen, Virginia, Irma ( teu cartão de natal me fez chorar), Tais, Margarita, Socorro, Magdalena, Stella, Rocio, Gloria e as ameríndias Lucila e Marta. Muita sorte, mulheres!

Havana, 22 de março de 2009
Tradução Thatiane X.