sábado, 13 de junho de 2009

Estou triste ?

Alice Walker

















Durante quase três anos eu e a pessoa que morava comigo alugamos uma casa no campo à beira de uma grande campina que parecia ir direto da nossa varanda até as montanhas. Porém, as montanhas estavam muito longe, e entre nós e elas havia, na verdade, uma cidade. Um dos aspectos agradáveis da casa era o fato de não percebermos isso.


Era uma casa com muitas janelas, baixas e largas, quase do assoalho até o teto, na sala de estar, que dava para a campina, e foi por uma delas que vi, pela primeira vez, nosso vizinho mais próximo, um grande cavalo branco, pastando, balançando a crina, andando de um lado para o outro ? não por toda a campina, que se estendia até se perder de vista, mas nos cinco e poucos acres cercados, ao lado dos vinte e poucos que tínhamos alugado. Logo fiquei sabendo que o cavalo, chamado Azul, pertencia a homem que morava em outra cidade, e era tratado pelo nosso vizinho. Ocasionalmente, uma das crianças, em geral um adolescente forte, mas às vezes uma garota bem mais nova, ou um garoto, montavam Azul. Apareciam na planície, subiam no dorso do animal, cavalgavam furiosamente por dez ou quinze minutos, desmontavam, batiam com a mão nos flancos de Azul e só apareciam depois de um mês ou mais.

Havia muitas macieiras no nosso quintal e uma delas ficava ao lado da cerca, quase ao alcance de Azul. Começamos a dar maçãs para ele, e Azul adorava, especialmente porque no verão a relva da campina - tão verde e suculento em janeiro - ficava seca por falta de chuva e Azul mastigava os talos secos, desanimado. Às vezes ele ficava imóvel ao lado da macieira e quando um de nós aparecia, relinchava, bufava alto ou batia com os cascos no chão. Naturalmente isso queria dizer: quero uma maçã.

Era maravilhoso apanhar algumas maçãs das árvores ou as que tinham caído no chão durante a noite e pacientemente segurá-las, uma a uma, perto da boca enorme com dentes largos de Azul. Eu me encantava como uma criança com os lábios escuros e flexíveis, os dentes enormes em forma de cubos que mastigavam maçãs, inteiras, com tamanha finalidade, e sua enormidade, o peito largo, ao lado da qual eu me sentia tão pequena. Quando eu era pequena, costumava andar a cavalo e tinha uma amizade especial por uma égua chamada Nan, até o dia em que eu estava montando, meu irmão a espantou e fui atirada de cabeça numa árvore. Quando voltei a mim, estava na cama e minha mãe inclinava-se preocupada ao meu lado; silenciosamente concordamos que montar talvez não fosse o esporte mais seguro para mim. Desde então eu ando, e prefiro andar a montar - mas tinha esquecido a profundeza do sentimento que existe nos olhos de um cavalo.

Assim, não estava preparada para a expressão nos olhos de Azul. Azul estava solitário. Azul estava terrivelmente solitário e entediado. Isso não me deixou chocada; cinco acres para andar sozinho sem parar, mesmo na mais bela das campinas - como a dele - não é exatamente interessante, e quando a estação das chuvas dava lugar à seca, era pior ainda. Não, fiquei chocada por ter esquecido que animais humanos e animais não humanos podem se comunicar muito bem; quando somos criados convivendo com animais, sabemos disso. Crescemos e esquecemos. Entretanto, os animais não mudaram. São, na verdade, criaturas completas (pelo menos parecem ser, muito mais do que nós) não sujeitas a mudanças; faz parte da sua natureza expressar o que sentem. O que mais podem expressar? E é o que fazem. E de um modo geral, são ignorados.

Depois de dar as maçãs a Azul, eu voltava para casa, sentindo que ele me observava. Então não ia ganhar mais maçãs? Seria aquela sua única distração para o dia todo? O filho pequeno do meu companheiro resolveu aprender a fazer colchas de retalhos; trabalhávamos em silêncio nos nossos respectivos bastidores enquanto eu pensava...

Bem, sobre a escravidão: sobre crianças brancas criadas por negros, que aprendiam com mulheres negras o primeiro amor incondicional e então, quando chegavam aos doze anos mais ou menos, aprendiam que precisavam "esquecer" os profundos níveis de comunicação entre elas e a "ama" que conheciam. Mais tarde poderiam dizer calmamente, "Minha velha ama foi _ _". Preencham o espaço em branco. Muitos anos depois uma mulher branca diria: "Não entendo esses negros, esses pretos. O que eles querem? São tão diferentes de nós"

E sobre os índios, considerados como "animais" pelos ?colonizadores? (um eufemismo muito benigno para o que realmente eram), que não compreendiam essa descrição como um elogio.

E sobre os milhares de homens americanos que se casam com japonesas, coreanas, filipinas e outras mulheres não de língua inglesa, que se consideram felizes, "abençoadamente felizes", até suas mulheres aprenderem a falar inglês, quando então o casamento desmorona. O que então esses homens viam, quando olhavam nos olhos das mulheres com que se casaram, antes que elas aprendessem a falar inglês? Aparentemente apenas o próprio reflexo.

Pensava na impaciência da sociedade para com os jovens, "Por que tocam essa música tão alto?". Talvez os filhos tenham ouvido a música de povos oprimidos, que seus pais dançavam antes de terem nascido, com seus braços apaixonados, mas suaves, de aceitação e amor, e não possam entender como seus pais não souberam ouvi-los.

Não sei há quanto tempo Azul habitava seus belos e tediosos cinco acres antes de nos mudarmos para aquela casa; um ano depois de termos chegado - e viajado para outros vales, outras cidades, outros mundos - ele ainda estava ali.

Porém no nosso segundo ano na casa, aconteceu algo na vida de Azul. Certa manhã, olhando pela janela para a neblina que se estendia como uma larga fita sobre a campina , vi outro cavalo, na outra extremidade do campo de Azul. Azul parecia estar com medo do outro animal e durante alguns dias nem tentou aproximar-se dele. Passamos uma semana fora. Quando voltamos, Azul resolvera fazer amizade e os dois cavalos passeavam e galopavam juntos e Azul já não ia tantas vezes até a macieira.

Quando se aproximava da árvore era sempre com a amiga e havia uma nova expressão em seus olhos. Uma expressão de independência, de segurança, de inalienável eqüinidade. A amiga finalmente ficou prenhe. Durante meses e meses, tive a impressão de que havia um sentimento mútuo de justiça, de paz. Eu dava maçãs aos dois. A expressão nos olhos de Azul era de um atrevido "Isso é a vida".

Mas não durou. Certo dia, depois de uma visita à cidade, saí para dar algumas maçãs a Azul. Ele estava esperando, pelo menos foi o que pensei, mas não sob a macieira. Quando sacudi a árvore e dei um pulo para trás, afim de evitar que as maçãs caíssem em cima de mim, ele nem se moveu. Levei algumas para ele. Azul mastigou metade de uma maçã. O resto, deixou cair no chão. Tive medo de olhar em seus olhos - porque já havia notado, é claro, que Marrom, sua companheira, não estava lá. Se eu tivesse nascido na escravidão e meu companheiro tivesse sido vendido ou morto , meu olhos seriam iguais aos dele. As crianças do vizinho explicaram que a companheira de Azul fora ?levada para ele? (a mesma expressão usada pelos antigos, eu havia notado, quando falavam de uma ancestral, durante a escravidão, engravidada pelo dono) para que ele a cobrisse e ela ficasse prenhe. Conseguindo isso, a égua foi levada pelo dono, que morava em outro lugar.

Ela vai voltar? perguntei.

Não sabiam.

Azul parecia um ser humano enlouquecido. Para mim, Azul era um ser humano enlouquecido. Galopava furiosamente, como se tivesse um cavaleiro, dando voltas e mais voltas nos seus belos cinco acres de terra. Relinchava até não poder mais. Escavava o solo com as patas. Dava marradas em sua única árvore de sombra. Olhava sempre e sempre para a estrada pela qual a companheira tinha partido. E então, ocasionalmente, quando se aproximava para receber maçãs, ou quando eu as levava até ele, Azul olhava para mim. Era um olhar tão penetrante, tão repleto de dor, um olhar tão humano, que quase me dava vontade de rir (a tristeza era grande demais para me fazer chorar), pensando que certas pessoas não sabem que os animais sofrem. Pessoas como eu que esqueceram, e esquecem a cada dia, tudo aquilo que os animais tentam nos dizer. "Tudo que vocês nos fazem acontecerá a vocês; somos seus professores, como vocês são nossos. Nós somos uma lição", é o que nos dizem basicamente, eu acho. Certas pessoas jamais pensaram nos direitos dos animais; aprenderam que os animais querem ser usados e abusados por nós, como as crianças muito novas "gostam" que as assustemos, ou como as mulheres ?adoram? ser maltratadas e estupradas... São os bisnetos daqueles que acreditavam nisso honestamente porque alguém ensinou a eles o seguinte: "As mulheres não podem pensar", e "negras não podem desmaiar". Porém, o que mais me perturbava nos grandes olhos castanhos de Azul era uma nova expressão, mais dolorosa que o desespero, a expressão de nojo dos seres humanos, nojo da vida; a expressão de ódio. E era estranho o efeito dessa expressão. Pela primeira vez dava a Azul a aparência de um animal selvagem. Significava que ele havia erguido uma barreira para se proteger de mais violência; nem todas as maçãs do mundo poderiam mudar isso.

E assim ficou Azul, uma bela parte da nossa paisagem, muito tranqüilo, visto pela janela, branco contra a relva verde. Um amigo que nos visitava disse certa vez: "Tinha de ser um cavalo branco, a verdadeira imagem da liberdade." E eu pensei, sim, os animais obrigatoriamente são transformados para nós em meras "imagens" daquilo que antes expressavam tão bem. E nos acostumamos a tomar leite de garrafas com imagens de vacas "satisfeitas", de cujas vidas reais nada queremos saber, comer ovos e coxas de "galinhas felizes", mastigar hambúrgueres de bois cheios de integridade, que comandam o próprio destino.

Falando sobre liberdade e justiça para todos, sentamos à mesa para comer bifes. Estou comendo sofrimento, pensei na primeira garfada. E cuspi a carne.

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