quinta-feira, 9 de julho de 2009

Mulher Negra

Lélia Gonzalez

















Situação da população negra

Desde a independência aos dias atuais, todo um pensamento e uma prática políticosocial preocupados com a chamada questão nacional, têm procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da nação brasileira. Assim sendo, não foi por acaso que os imigrantes europeus concentraram-se em regiões que, do ponto de vista político e econômico, detêm a hegemonia quanto à determinação dos destinos do país. Refiro-me sobretudo à região Sudeste. Por isso mesmo, pode-se afirmar a existência de uma divisão racial do espaço, em nosso país (Gonzalez, 1979), uma espécie de segregação, com acentuada polarização, extremamente desvantajosa para a população negra: quase dois terços da população branca (64%)concentra-se na região mais desenvolvida do país, enquanto a população negra, quase na mesma proporção (69%), concentra-se no resto do país, sobretudo em regiões mais pobres como é o caso do Nordeste e de Minas Gerais (Hasenbalg, 1979).

Caracterizando sumariamente a formação social brasileira, diríamos que ela se estrutura em termos de acumulação capitalista dependente ou periférica, com conflito de interesses de classes antagônicas e onde o sistema político de dominação da classe dominante é rigoroso. E uma de suas contradições básicas é justamente “a cristalização de desigualdades extrema entre ‘regiões’ brasileiras,onde se pode distinguir, estruturalmente articulado, e a conseqüente reprodução dos níveis de pobreza e miséria em que vivem suas populações” (Farias, 1983:46. Grifos da autora). Acontece que o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro marcou, nas duas últimas décadas, a consolidação da sociedade capitalista em nosso país. Altas taxas de crescimento da economia e a acelerada urbanização, estimuladas pela intervenção direta do Estado, resultaram num tipo de “integração” das regiões subdesenvolvidas às exigências da industrialização do Sudeste. Como sabemos, a lógica interna que determina a expansão do capitalismo industrial em sua fase monopolista, entrava o crescimento equilibrado das forças produtivas nas regiões subdesenvolvidas. Estabelece-se, desse modo, o que Num (1978) caracterizou como desenvolvimento desigual e combinado que, dentre outros efeitos, remete à dependência neocolonial e a um “colonialismo interno”.

Por isso mesmo, os aspectos positivos do desenvolvimento econômico brasileiro (cuja fase culminante ficou conhecida como “milagre brasileiro”: 1968-1973) foram neutralizados por determinados fatores que confirmam o que dissemos mais acima. De acordo com Hasenbalg e Valle Silva (1984), destacam-se, entre esses fatores:

a) Deterioração das condições de vida dos estratos urbanos de baixa renda. Não esqueçamos que o deslocamento de grandes contingentes demão de obra do campo para os centros urbanos determinou, não o crescimento populacional destes últimos, mas a sua “inchação”, com a
conseqüente formação de bairros periféricos e de favelas (na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, existiam 757 mil favelados em 1970; em 1980, seu número aumentou para 1.740 mil, passando a constituir cerca de 34% da população do município), onde se pôde constatar: aumento da mortalidadeinfantil, aumento dos acidentes de trabalho, deterioração e crescimento insuficiente da infra-estrutura urbana de transportes, problemas habitacionais e de saneamento básico, altos índices de evasão escolar no primeiro grau, insuficiências quanto ao atendimento médico-hospitalar do sistema previdenciário, etc.. Desnecessário dizer que esse subproletariado é constituído majoritariamente por negros.

b) Concentração de renda. Apesar das mudanças da estrutura de classes durante esses vinte anos, os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos (não esqueçamos que ainda em 1980, um terço da população economicamente ativa – PEA, encontrava-se na faixa salarial de até 1 salário mínimo mensal2, sobretudo no que se refere ao campo. Continuando sua análise, os autores citados informam que, em 1970, os 50% mais pobres participavam em 14,9% dos rendimentos obtidos pela PEA; em 1980, essa participação baixou para 12,6%; os 10% mais ricos aumentaram sua apropriação de 46,7% para 50,9%; o 1% mais rico passou de 14,7% para
16,9%, superando consideravelmente sua apropriação, se comparada àquela recebida pelos 50% mais pobres. No campo, entretanto, é que esses percentuais se tornam gritantemente desiguais: o dos 50% mais pobres cai de 22,4% para 14,9%, enquanto o do 1% mais rico elevou-se de 10,5% para 29,3%.

Pelo exposto, o desenvolvimento econômico brasileiro, segundo esses analistas, resultou num modelo de modernização conservadora excludente. Poderíamos considerá-lo, também, a partir da noção de desenvolvimento desigual e combinado, em que a formação de uma massa marginal, de um lado, assim como a dependência neocolonial e a permanência de formas produtivas anteriores, de outro, constituemse como fatores que triplicam o sistema. Vale notar que a noção de massa marginal diz respeito à força de trabalho que, enquanto superpopulação relativa, torna-se supérflua em face do processo de acumulação hegemônico, representado pelas grandes empresas monopolistas. As questões relativas ao desemprego e ao
subemprego incidem justamente sobre essa superpopulação.

É nesse sentido que o racismo -- enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas -- denota sua eficácia estrutural na medida em que remete a uma divisão racial do trabalho extremamente útil e compartilhado pelas formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Portanto, o desenvolvimento econômico brasileiro, enquanto desigual e combinado, manteve a força de trabalho negra na condição de massa marginal, em tempos de capitalismo industrial monopolista, e de exército de reserva, em termos de capitalismo industrial competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico do monopólio).

Não é casual, portanto, o fato da força de trabalho negra permanecer confinada nos empregos de menor qualificação e pior remuneração. A sistemática discriminação sofrida no mercado de trabalho remete a uma concentração desproporcional de negros nos setores agrícola, da construção civil e da prestação de serviços. Segundo o Censo de 1980, esses setores absorvem 68% de negros e 52% de brancos. Como já dissemos anteriormente, um terço (33%) da PEA, em 1980, recebia até 1 salário mínimo. Se analisarmos essa percentagem em termos de composição racial, teremos 24% de brancos e 47% de negros. Do outro lado do espectro de rendimentos, a proporção de pessoas com renda mensal superior a 10 SM era de 3,72%: os brancos constituíam 8,5% e os negros cerca de 1,5%. De acordo com os dados da PNAD-82, houve um momento da proporção dos que ganham até 1 SM, que passaram de 33% para 36%, numa prova patente do empobrecimento do país. Desnecessário dizer que os negros foram os que mais sofreram: de 44% passaram para cerca de 50%, enquanto os brancos foram de 24%
para 28%. E é justamente no Nordeste (9 milhões de negros para 3,8 milhões de brancos) que ficam evidenciadas as maiores desigualdades: de cada 10 negros integrados na PEA, 6 ganham até 1 SM. A distribuição de renda, como vemos, não deixa de constituir um dos aspectos das desigualdades raciais em nosso país.

Uma outra dimensão dessas desigualdades se faz presente no acesso ao sistema educacional e às oportunidades de escolarização. O Censo de 1980 revelava a existência de 35% de analfabetos na população maior de 5 anos. Entre os brancos, a proporção era de 25%, enquanto entre os negros era de 48%, ou seja, quase o dobro. Os graus de desigualdade educacional acentuam-se ainda mais, quando se trata de acesso aos níveis mais elevados de escolaridade. Em 1980, os brancos tinham 1,6 vezes mais oportunidades de completarem de 5 a 8 anos de estudos, 2,5 vezes mais de completarem de 9 a 11 anos de estudo e 6 vezes mais de completarem 12 anos ou mais de estudos (Hasenbalg e Valle Silva). E isto significa que os negros já nascem com menos chance de chegarem ao segundo grau e praticamente nenhuma de atingirem a universidade.

SITUAÇÃO DA MULHER NEGRA

As transformações ocorridas na sociedade brasileira, no período 1968-1980, tiveram um impacto considerável na força de trabalho feminina, sobretudo nos anos setenta. “A primeira metade da década foi o auge do ‘milagre brasileiro’. (...) A força de trabalho feminina dobra de 1970 para 1976. Mais interessante ainda: em 1969 havia cem mil mulheres na universidade para duzentos mil homens. Em 1975 este número tinha subido para cerca de quinhentas mil mulheres (para quinhentos e oito mil homens), passando a proporção de 1:2, em 69, para 1:1 em 75. O número de mulheres na universidade havia quintuplicado em cinco anos! Vemos aí como se conjugam, então, os fatores econômicos reforçando os comportamentais e viceversa.
Isto pode explicar, ao menos em partes, em que nestes primeiros cinco anos da década, mesmo sem haver movimento organizado, tenha surgido interesse tão agudo para o problema da mulher. Foi nesses cinco anos, mesmo, que se processou a maior transformação da condição da mulher na história de nossoPaís” (Muraro, 1983:14. Grifos nossos). E, num outro contexto, lemos: “Em definitivo, as mulheres não só tendem a conseguir uma melhor distribuição na estrutura ocupacional, como também abandonam os setores da atividade que absorvem a força de trabalho menos qualificada e pior remunerada, para ingressar em proporções crescentes na indústria e nos serviços modernos” (Hasenbalg e Valle Silva, 1984:40. Grifos da autora).

Pelo exposto na primeira parte deste trabalho, os trechos acima reproduzidos não se referem, de modo algum, à mulher negra ou às mulheres negras. Por conseguinte, algumas questões impõem-se à nossa reflexão. E a primeira delas, diz respeito à situação da mulher negra no interior da população economicamente ativa, à sua inserção na força de trabalho.

Como os trabalhadores negros (92,4%), as trabalhadoras negras concentram-se, sobretudo, nas ocupações manuais (83%), o que significa: 4/5 da força de trabalho negra tem uma inserção ocupacional caracterizada por baixos níveis de rendimentos e de escolaridade. As trabalhadoras negras encontram-se alocadas em ocupações manuais rurais (da agropecuária e da extrativa vegetal) e urbanas (prestação de serviços), tanto como assalariadas quanto como autônomas e não remuneradas. Já a proporção de mulheres brancas nas ocupações manuais é bem menor: 61,5% (Araújo Costa e Garcia de Oliveira, 1983).

Enquanto isso, nas ocupações não-manuais, a presença da trabalhadora negra ocorre em proporções muito menores: 16,9% para 38,5% de trabalhadoras brancas. A análise dessas ocupações, divididas em dois níveis, o médio e o superior, revelanos aspectos bastante interessantes com relação às dificuldades de mobilidade social ascendente para a mulher negra. Naquelas de nível médio (pessoal de escritório, bancárias, caixas, professoras de primeiro grau, enfermeiras, recepcionistas, etc.), a concentração de mulheres é muito maior que a de homens. Mas, se a dimensão racial é inserida entre elas, a constatação é que a proporção de negras também é muito menor (14,4%) que a de brancas (29,7%). Como em muitas das atividades de nível médio exige-se contato direto com o público, torna-se
evidente a dificuldade de acesso que as mulheres negras têm com relação a essas atividades (questão de “boa aparência”). Quando se trata das profissionais de nível superior, das empresárias e das administradoras, a presença da mulher negra é quase de invisibilidade: 2,5% para 8,8%.

No que diz respeito às diferenças de rendimento médio, o Censo de 1980 apresentanos os seguintes dados: até 1 salário mínimo, um percentual de 23,4% de homens brancos, 43% de mulheres brancas, 44,4% de homens negros e 68,9% de mulheres negras. De 1 a 3 SM, 42,5% de homens brancos, 38,9% de mulheres brancas, 42,4% de homens negros e 26,7% de mulheres negras. De 3 a 5 SM: 14,6% de homens brancos, 9,5% de mulheres brancas, 8,0% de homens negros e 3,1% de mulheres negras. E, dentre aqueles com rendimentos acima de 10 SM: 8,5% de homens brancos, 2,4% de mulheres brancas, 1,4% de homens negros e 0,3% demulheres negras (Hasenbalg e Valle Silva).

Comparativamente às famílias brancas pobres, a situação das famílias negras não é de igualdade. Já a PNAD-76 demonstrava que, em termos de renda familiar até 3 SM, por exemplo, a situação era a seguinte: cerca de 50% de famílias brancas para 75% de famílias negras. As diferenças eram e continuam expressivas, quando se trata da taxa de atividade dessas famílias: a das negras é bem maior que a das brancas. Isto significa que o número de membros das famílias negras inseridos na força de trabalho é muito maior que aquele das famílias brancas para a obtenção do mesmo rendimento familiar. Um dos efeitos desse trabalhar mais e ganhar menos implica no lançar mão do trabalho do menor. Por isso mesmo, a proporção de menores negros na força de trabalho é muito maior que a de menores brancos (e
estamos falando daqueles que se encontram na faixa dos 10 aos 17 anos). Por aí se entende porque nossas crianças mal conseguem cursar o primeiro grau: não se trata, como pensam e dizem alguns, de uma “incapacidade congênita da raça” para as atividades intelectuais, mas do fato de que, desde muito cedo, têm que “ir à luta” para ajudar na sobrevivência da própria família.

Em pesquisa que realizamos com mulheres negras de baixa renda (1983), muito poucas, dentre nossas entrevistadas, começaram a trabalhar já adultas. Migrantes na grande maioria (principalmente vindas de Minas Gerais, do Nordeste ou do interior do Estado do Rio de Janeiro), e muitas vezes já tendo “trabalhado na roça”, entravam na força de trabalho por volta dos 8-9 anos de idade para “ajudar em casa”. Desnecessário dizer que, nos centros urbanos, começavam a trabalhar “em casa de família”, além de tentarem freqüentar alguma escola. Pouquíssimas conseguiram “fazer o primário”. Um dos depoimentos mais significativos para nós, o de Maria, fala-nos das dificuldades da menina negra e pobre, filha de pai desconhecido, em face de um ensino unidirecionado, voltado para valores que não os dela. E, contando seus problemas de aprendizagem, ela não deixava de criticar o comportamento de professores (autoritariamente colonialistas) que, na verdade, só fazem reproduzir práticas que induzem nossas crianças a deixar de lado uma escola onde os privilégios de raça, classe e sexo constituem o grande ideal a ser atingido, através do saber “por excelência”, emanado da cultura “por excelência”: a ocidental burguesa.

Por isso mesmo, o texto de abertura desta segunda parte do nosso trabalho (Muraro, 1983) é bastante sintomático: se as transformações da sociedade brasileira nos últimos vinte anos favoreceram “a mulher”, não podemos deixar de ressaltar que essa forma de universalização abstrata encobre a realidade vivida, e duramente, pela grande excluída da modernização conservadora imposta pelos donos do poder do Brasil pós-64: a mulher negra. É por aí que se entende, por exemplo, uma das contradições do movimento de mulheres no Brasil. Apesar de suas reivindicações e de suas conquistas, ele acaba por reproduzir aquilo que Hasenbalg (1982:105) sintetizou com felicidade: “No registro que o Brasil tem de si mesmo, o negro tende à condição de invisibilidade”. Apesar das poucas e honrosas exceções (e Muraro é uma delas), no sentido de maior entendimento da situação da mulher negra, poderíamos dizer que a dependência cultural é uma das características desse movimento em nosso país.

A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NEGRA

O desenvolvimento e a expansão dos movimentos sociais, na segunda metade dos anos setenta, propiciou a mobilização e a participação de amplos setores da população brasileira, no sentido da reivindicação de seus direitos e de uma intervenção política mais direta. No caso da população negra, vamos encontrá-la sobretudo no Movimento Negro e no Movimento de Associação de Moradores nas favelas e bairros periféricos (ressaltando-se aí, o papel e a importância do Movimento de Favelas).

O movimento Negro desempenhou um papel de extrema relevância na luta antiracista em nosso país, sensibilizando inclusive os setores não negros e buscando mobilizar as diferentes áreas da comunidade afro-brasileira para a discussão do racismo e suas práticas. “Importa dizer que os principais protagonistas dos movimentos políticos negros atuais são os filhos dos primeiros negros a ingressarem de forma definitiva na classe operária e nas classes médias, dos heróis da migração interna; são mesclados entre os primeiros estudantes negros a ingressarem na universidade, jovens operários e trabalhadores negros e dançarinos de soul --
símbolo moderno da contestação da juventude negra à dominação branca e da miopia dos liberais ante o racismo e sua falsa consciência nacional.” (Cardoso, 1983-1984:46). Os centros, a partir dos quais a luta cresceu, foram as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro que, bem no coração do Sudeste, apresentaram, de imediato, as evidências das contradições do “milagre brasileiro”. E dentre esses movimentos, vale ressaltar o Movimento Negro Unificado que, em seus primeiros dois anos de existência (1978-1980) não só se estendeu a outros estados do
Sudeste, do Nordeste o do Sul, como desenvolveu uma série de atividades que muito contribuíram para o avanço da consciência democrática, anti-racista e anticolonialista em nosso país. E a presença de mulheres negras, não apenas na criação como na sua direção, não pode ser esquecida (Gonzalez, 1982).

Enquanto o Movimento Negro desenvolveu-se a partir sobretudo de setores das classes médias negras, o Movimento de Favelas organizou-se a partir do subproletariado urbano em associações de moradores. Como já vimos, o processo de favelização dos grandes centros urbanos do Sudeste determinou a presença altamente representativa desse novo contingente populacional (os supracitados heróis da migração) que não aceitou passivamente sua exclusão do “processo do Brasil”. Suas reivindicações vão desde a exigência de melhores condições de
habitação/saneamento básico, de transporte, educação, saúde, etc., ao título de propriedade do solo urbano que ocupam. Dado o seu caráter inovador, o Movimento de Favelas acabou por influenciar os setores da classe média no sentido de também de organizarem em associações de moradores. Em termos de Rio de Janeiro, por exemplo, a existência de dois tipos de organizações apontam para esse fato: a FAFERJ (favelas) e a FAMERJ (bairros). Desnecessário dizer que a presença de mulheres negras no Movimento de Favelas tem sido altamente representativa.

No que diz respeito aos primeiros grupos organizados de mulheres negras, durante esse período, eles surgem no interior do Movimento Negro. E isto, em parte, se explica pelo fato de que os setores médios da população negra que conseguiram entrar no processo competitivo do mercado de trabalho no setor das ocupações nãomanuais, são aqueles mais expostos às práticas discriminatórias (Oliveira, Porcaro e Araújo Costa, 1980). Assim sendo, é no Movimento Negro que se encontra o espaço necessário para as discussões e o desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo e suas práticas e de articulações com a exploração de classe. Por outro lado, o Movimento Feminista ou de Mulheres, que tem suas raízes nos setores mais avançados da classe média branca, geralmente “se esquece” da
questão racial, como já dissemos anteriormente. E esse tipo de ato falho, a nosso ver, tem raízes históricas e culturais profundas (Gonzalez, 1981 e 1982-b).

O desempenho das mulheres negras na formação do Movimento Negro no Rio de Janeiro, por exemplo, foi da maior importância. Vejamos o que nos diz a antropóloga Maria Berriel, da Universidade Federal Fluminense. Seu envolvimento com a questão negra iniciou-se em 1969, da seguinte maneira: “Foi sobretudo percebendo as dificuldades de alunos negros (por força da expansão do capitalismo, nós começamos a receber alunos negros na universidade); ocorreu que muitos dos nossos alunos estavam com dificuldades no mercado de trabalho. Então, resolvi
fazer uma pesquisa para avaliar os artifícios e as estratégias que impediam o aproveitamento do negro na esfera ocupacional. Esses alunos não só -- juntamentE com alunos brancos -- entraram numa faixa de atividade bastante atuante, como até fizeram uma dramatização: recortavam anúncios, apresentavam-se nos lugares e, em seguida, os alunos brancos os substituíam; e sentia-se todo o esquema de restrição montado, claramente. (...) E dali, houve um contato com a Cândido Mendes, que passou a organizar congressos, ou melhor, encontros”. E esses encontros ocorreram sobretudo por iniciativa da professora Maria Beatriz
Nascimento que, já desde 1972, encontrava-se à frente da Semana Cultural Negra, realizada na UFF (semana esta que, ainda segundo Berriel, ela “organizou insistentemente, aceitando os desafios que foram colocados gradativamente, na medida em que a semana ia sendo implantada”).

Os históricos encontros na Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro-RJ) atraíram toda uma nova geração negra que ali passou a se reunir para discutir o racismo e suas práticas, enquanto modo de exclusão da comunidade negra. Viviase, naqueles momentos, a euforia do “milagre brasileiro”, do “ninguém segura este país” e coisas que tais. Mas, a “negadinha” ali reunida (fins de 1973 / início de 1974), sabia muito bem o que isto significava para a nossa comunidade. E, fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio Movimento Negro), era justamente o da atuação das mulheres negras que, ao que parece, antes mesmo da
existência de organizações do Movimento de Mulheres, reuniam-se para discutir o seu cotidiano marcado, por um lado, pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo não só dos homens brancos, mas dos próprios negros. E não deixavam de reconhecer o caráter mais acentuado do machismo negro, uma vez que este se articula com mecanismos compensatórios que são efeitos diretos da opressão racial (afinal, qual a mulher negra que não passou pela experiência de ver o filho, o irmão,o companheiro, o namorado, o amigo, etc., passarem pela humilhação da suspeição policial, por exemplo?). Nesse sentido, o feminismo negro possui sua diferença específica em face do ocidental: a da solidariedade, fundada numa experiência histórica comum. Por isso mesmo, após sua reunião, aquelas mulheres: Beatriz
(Nascimento), Marlene, Vera Mara, Joana, Alba, Judite, Stella, Lucia, Norma, Zumba, Alzira, Lísia e várias outras (eram cerca de vinte) juntavam-se a seus companheiros para a reunião ampliada (que chamavam de “Grupão”), onde colocavam os resultados de sua discussão anterior, a fim de que o conjunto também refletisse sobre a condição da mulher negra.

Em, 1975, quando as feministas ocidentais se reuniam na Associação Brasileira de Imprensa para comemorar o Ano Internacional da Mulher, elas ali compareceram, apresentando um documento onde caracterizavam a situação de opressão damulher negra (Gonzalez, 1982-a). Todavia, dados os caminhos seguidos por diferentes tendências que se constituíram a partir do “Grupão”, esse grupo pioneiro acabou por se desfazer e suas componentes continuaram a atuar, então, nas diferentes organizações que se criaram.

Os anos seguintes testemunharam a criação de grupos de mulheres negras (Aqualtune, 1979; Luiza Mahin, 1980; Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 1982) que, de um modo ou outro, foram reabsorvidos pelo Movimento Negro. Todas nós, sem jamais termos nos distanciados do MN, continuamos nosso trabalho de militantes no interior das organizações mistas a que pertencíamos (André Rebouças, IPCN3, SINBA, MNU, etc.), sem, no entanto, desistir da discussão de nossas questões específicas junto aos nossos companheiros que, muitas vezes, tentavam nos excluir do nível das decisões, delegando-nos tarefas mais ”femininas”.
Desnecessário dizer que o MN não deixava (e nem deixou ainda) de reproduzir certas práticas originárias de ideologia dominante, sobretudo no que diz respeito ao sexismo, como já dissemos. Todavia, como nós, mulheres e homens negros, nos conhecemos muito bem, nossas relações, apesar de todos os “pegas”, desenvolvem-se num plano mais igualitário cujas raízes, como dissemos acima, provêm de um mesmo solo: a experiência histórico-cultural comum. Por aí se explica a competição de muitos militantes com suas companheiras de luta (que se
pense no “esquecimento” a que nos referimos anteriormente). Mas, por outro lado, por aí também se explica o espaço que temos no interior do MN. E vale notar que, em termos de MNU, por exemplo, não apenas nós, mulheres, como nossos companheiros homossexuais, conquistamos o direito de discutir, em congresso, asnossas especificidades. E isto, num momento em que as esquerdas titubeavam sobre “tais questões”, receosas de que viessem a “dividir a luta do operariado”.

Enquanto isso, nossas experiências com o Movimento de Mulheres, caracterizavamse como bastante contraditórias: em nossas participações em seus encontros ou congressos, muitas vezes éramos consideradas “agressivas” ou “não-feministas” porque sempre insistimos que o racismo e suas práticas devem ser levados em contas nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, constituem formas estruturais de opressão e exploração em sociedades como a nossa. Quando, por exemplo, denunciávamos a opressão da exploração das empregadas domésticas por suas patroas, causávamos grande mal-estar; afinal, dizíamos, a exploração do
trabalho doméstico assalariado, permitiu a “liberação” de muitas mulheres para se engajarem nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a violência policial contra os homens negros, ouvíamos como resposta que violência era aquela da repressão contra os heróis da luta contra a ditadura (como se a repressão, tanto num quanto noutro caso, não fizesse parte da estrutura do mesmo estado policial-militar). Todavia, não deixamos de encontrar solidariedade da parte de setores mais avançados do MM4 que demonstraram interesse em não só divulgar nossas lutas como em colaborar conosco em outros níveis.

Apesar de aspectos positivos em nossos contatos com o MM, as contradições e ambigüidades permanecem, uma vez que, enquanto originário do MM ocidental, o MM brasileiro não deixa de reproduzir o “imperialismo cultural” daquele (Bourne, 1983). E, nesse sentido, não podemos esquecer que alguns setores do MM não têm o menor escrúpulo em manipular o que chamam de “mulheres de base” ou “populares” como simples massa de manobra para a aprovação de suas propostas (determinadas pela direção masculina de certos partidos políticos). Mas, por outro lado, muitas “feministas” adotam posturas elitistas e discriminatórias em face dessas mesmas mulheres populares. De acordo com o relato de companheiras do NZINGA, por ocasião da reunião em que seria tirado o nome daqueles que representaria o
MM no comício das diretas do dia 21 de Março no Rio, uma militante feminista branca, não aceitando a indicação de uma mulher negra e favelada, declarou, com todas as letras que “mulher de bica d´água não pode representar as mulheres“ (Garcia, 1984). “E ainda recentemente, participando de uma reflexão sobre a ‘sexualidade feminina’, convocada pelo PT5 para poder encaminhar as questões da mulher (...) constatamos (...) afirmações como “a mulher negra desperta mais cedo para a sexualidade”, ou “a empregada doméstica como veículo da descoberta de temas sexuais através de revistas, conversas, etc.” ou ainda, o que é muito comum, “a questão da mulher negra é uma questão de classe e não de raça”” (Garcia,
1984:5). Por essas e outras é que se entende porque os grupos de mulheres negras se organizaram e se organizam a partir do MN e não do MM. Aliás, as pouquíssimas negras que militam apenas no MM têm muita dificuldade no sentido de se aprofundar no que diz respeito à questão racial. Talvez porque achem que no Brasil não existe racismo (porque, como disse Millor Fernandes, “o negro sabe onde é o seu lugar.”)...

O grande encontro do MN com o Movimento de Favelas ocorreu a partir da campanha eleitoral de 1982, uma vez que, até aquele momento, vinham atuando de maneira paralela. Os efeitos da chamada abertura política, concretizados na formação de novos partidos políticos, atraíram setores que, até então, haviam permanecido à margem do processo político partidário. Os novos programas, de um outro modo, integraram algumas das reivindicações dos movimentos sociais e os partidos de oposição preocuparam-se em lançar candidatos populares. E foi nesse contexto que surgiram candidaturas originárias do MN e do MF.

No meu caso pessoal, tive a oportunidade de fazer a campanha em conjunto com duas irmãs faveladas: Benedita da Silva e Jurema Batista. De um lado, a profunda consciência dos problemas e das necessidades concretas da comunidade; de outro, a consciência da discriminação racial e sexual enquanto articulação da exploração de classe. A troca de saberes/experiências foi proveitosa para ambos os lados; e o ponto de entendimento comum foi justamente a questão da violência policial contra a população negra. No final da campanha nossas falas estavam inteiramente afinadas, apesar das diferenças individuais. A despeito de toda uma experiência nesse terreno, vivenciamos situações de extrema riqueza política e pessoal.

Apesar dos resultados negativos para ambos os movimentos -- e justamente por isso --, se nos impôs a exigência de efetuar uma avaliação conjunta da atuação dos candidatos negros dos partidos de oposição no processo eleitoral. Daí em diante, os dois movimentos passaram a ter uma atuação mais unitária. E alguns exemplos são bastante significativos: a presença de faveladas no Encontro de Mulheres, promovido pelo Grupo de Mulheres Negras do Rio de janeiro (março de 1983); a cobertura e divulgação de eventos do MN pelo jornal do MF, “O Favelão”; a criação de organizações vinculadas ao MN nas áreas periféricas do Rio de Janeiro; a criação de uma vice-presidência comunitária na estrutura do IPCN e etc.. Nessa linha de trabalho -- mediante a articulação do MF, do MM e do MN -- Benedita da Silva tomou a iniciativa da organização e realização do I Encontro de Mulheres de Favelas e Periferias (julho de 1983). Pelo exposto, fica evidente que novas perspectivas se abriram para ambos os movimentos.

E é nesse contexto que se inscreve a criação do NZINGA/Coletivo de Mulheres Negras, no dia 16 de junho de 1983, justamente na sede da Associação de Moradores do Morro dos Cabritos, por um grupo de mulheres originárias, sobretudo, do MF e MN: Jurema Batista (MF), Geralda Alcântara (MF), Miramar da Costa Correia (MN - Mov. de Bairros), Sonia C. da Silva (MF), Sandra Helena (MF), Bernadete Veiga de Souza (MF), Victoria Mary dos Santos (MN) e Lélia Gonzalez (MN). Em meados de julho daquele mesmo ano, a companheira Jurema Batista
(fundadora e presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí) seguia para Lima como delegada do NZINGA para o II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, juntamente com duas representantes do Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro (e a atuação dessas companheiras foi de tal ordem que conseguiram que se criasse um Comitê Anti-Racismo no interior do Encontro). Pela primeira vez, na história do feminismo negro brasileiro, uma favelada representava, no exterior, uma organização específica de mulheres negras.

Somos um Coletivo: não aceitamos que a arbitrariedade de uma hierarquia autoritária determine nossas decisões, mas que elas sejam o resultado de discussões democráticas. Somos um Coletivo de Mulheres porque lutamos contra todas as formas de violência, ou seja, lutamos contra o sexismo e a discriminação sexual. Somos um Coletivo de Mulheres Negras: além do sexismo, lutamos contra o racismo e a discriminação racial que fazem de nós o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira (...) Nosso objetivo é trabalhar com as mulheres negras de baixa renda (mais de 80% das trabalhadoras negras), que vivem
principalmente nas favelas e nos bairros de periferia. E por quê? Porque são discriminadas pelo fato de serem mulheres, negras e pobres”. Este é um trecho de um panfleto distribuído no dia 25 de março de 1984, no Morro do Andaraí, onde o NZINGA organizou, em um só evento, a comemoração do 8 de março (Dia Internacional da Mulher) e do 21 de março (Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial). No mesmo panfleto também dizíamos quem foi NZINGA e explicávamos o significado das duas datas.

A escolha do nome de NZINGA tem a ver com a nossa preocupação de resgatar um passado histórico racalcado por uma “história” que só fala dos nossos opressores. E a famosa rainha Jinga (NZINGA) teve um papel da maior importância na luta contra o opressor português em Angola. E o pássaro que usamos como símbolo tem a ver com a tradição nagô, segundo a qual, a ancestralidade feminina é representada por pássaros. E nossas cores têm a ver, o amarelo com Oxum, e o roxo com o movimento internacional de mulheres.

Para encerrar, gostaríamos de prestar nossa homenagem a uma grande companheira de MN (pertencíamos ao mesmo grupo, o Luiza Mahin, quando militávamos no MNU) que vem desenvolvendo um trabalho da maior importância com relação aos seus companheiros e companheiras de profissão. Refiro-me a Zezé Motta que, coerentemente em sua militância de mulher negra, fundou o Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro/CIDAN que aí está, inclusive, para desmascarar essa estória de que “não existem atores negros” (o que justifica até certos atores de respeito, pintarem-se de preto) e, fundamentalmente, para que a história passada e presente dos artistas negros fiquem devidamente registradas. Como se vê, trata-se de um trabalho cujos efeitos só podem trazer
benefícios para os negros que trabalham num setor profissional que se destaca pelo seu caráter altamente discriminador, do ponto de vista racial.

Pelo exposto, evidencia-se que nossa preocupação, em termos de participação da mulher negra, focalizou especialmente aquelas mulheres que atuam sobretudo no MN. Já o trabalho desenvolvido pelas mulheres negras nas associações de moradores, tanto de favelas quanto de bairros periféricos, registra uma história de lutas heróicas cuja análise não poderíamos fazer aqui por questões de espaço e de tempo. Conseqüentemente, num outro texto, dada a riqueza de elementos a serem apresentados para a nossa reflexão.

AXÉ NGUNZO, MUNTU!

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2 Cerca de U$ 60.00, em julho de 1985.
3 IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras
4 MM [movimento de mulheres]
5 PT [Partido dos Trabalhadores]