segunda-feira, 23 de novembro de 2009



(Charge de Ikenga)

domingo, 22 de novembro de 2009

"Taís Araújo e o tapa da sinhá Tereza"




Assistindo televisão semana passada (16/11), pude ver a cena na qual Helena (personagem vivida por Taís Araújo) toma uma tapa na cara de Tereza(Lília Cabral), pensei em muitas coisas e pensei em escrever no blog sobre isso.
No dia seguinte recebi um e-mail que gostaria de compartilhar com os leitores, pois expressou e sintetizou os meus pensamentos que ficaram atordoados após assistir a cena ...

" Vamos comemorar a primeira protagonista negra da novela das oito Taís Araújo? Devemos? Não sei!! Alguém viu a cena de hoje em que a Helena pede perdão ajoelhada à Tereza e a última lhe dá uma bofetada. Parece a sinhá batendo na escravazinha.
Realmente fiquei estarrecido com a imagem de ontem e o tal do Manoel Carlos fez para provocar. Lançar uma imagem dessas na semana do dia 20 é provocação. Tentativa de reafirmar nossa humilhação, nossa subordinação, nosso lugar, na figura da atriz negra com maior visibilidade da televisão brasileira. Mandou um recado bem forte: Vocês mesmo ascendendo socialmente serão negros e passíveis de humilhação pelo branco. São inferiores e devem sempre lembrar do seu lugar.
Que coisa feia para Taís representar um papel desses. Sei que o contrato estabelce que ela deve fazer o que o roteiro mandar, mais que humilhação. "

...

"Gostaria de ser uma mosca e saber o que a população negra sentiu quando a Taís (sim a Tais) tomou o tapa.
Esperem que vem mais por aí!!

Rogério José "



sexta-feira, 20 de novembro de 2009

E no 20 de Novembro ...

(Charge de Angeli)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Fragmento de O OLHO MAIS AZUL

Toni Morrison



















" Frieda e ela conversaram, enternecidas, sobre como Shirley Temple era lindinha.Eu não podia participar dessa adoração porque odiava a Shirley. Não porque era lindinha, mas porque dançava com Bojangles, * quer era meu amigo, meu tio, meu pai e deveria dançar e rir era comigo. Em vez disso, ele desfrutava, compartilhava, concedia uma encantadora dança a uma daquelas garotinhaa brancas cujas meias nunca escorregavam para dentro dos sapatos. Por isso eu disse: " Eu gosto da Jane Withers".

Elas me deram uma olhada intrigada, concluíram que eu era incompreensível e continuaram trocando reminescências sobre a vesga da Shirley.
Mais nova do que Frieda e Pecola, eu ainda não havia chegado ao ponto decisivo na desenvolvimento da minha psique que me permitira gostar dela. O que eu sentia naquela época era ódio puro. Mas antes eu tinha um sentimento mais estranho e assustador do que o ódio por todas as Shirley Temples do mundo. Começou no Natal, com as bonecas ganhas de presente. O presente grande, especial, dado com muito carinho, era sempre uma Baby Boll grande, de olhos azuis, Pela tagarelice dos adultos, eu sabia que a boneca reprensetava o que eles pensavam que fosse o meu maior desejo. Fique pasmada com a coisa e com a aparência que tinha. Eu tinha que fazer o que com aquilo? Fingir que era mãe? Eu não tinha interesse por bebês nem pelo conceito de maternidade. Estava interessada somente em seres homanos da minha idade e tamanho, e não conseguia sentir entusiasmo algum ante a perspectiva de ser mãe. Maternidade era velhice e outras possiblidades remotas. Mas aprendi depressa o que esperavam que eu fizesse com a boneca: embalá-la, inventar historinhas em torno dela, até dormir com ela. Os livros de figuras estavam cheios de garotinhas dormindo com suas bonecas. Geralmente bonecas de pano Ragged Ann, mas essas estavam fora de questão. Eu ficava enojada e secretamente assustada com aqueles olhos redondos imbecis, a cara de panqueca e o cabelo de minhocas alaranjadas.


























As outras bonecas, que supostamente me dariam grande prazer, tiveram êxito em fazer o oposto. Quando a levei para a cama seus membros duros resistiam ao meu corpo - as pontas dos dedos afilados naquelas mãos com covinhas arranhavam. Se eu me virasse dormindo, a cabeça fria como um osso batia na minha. Era uma companheira de sono muito desconfortável e patentemente agressiva. Segurá-la não era mais gratificante. A gaze ou renda engomada do vestido de algodão tornava irritante qualquer abraço. Eu tinha uma única vontade: desmembrá-la. Ver do que era feita, descobrir o que havia de tão estimável, de desejável, de beleza que me havia escapado, e aparentemente só a mim.
Adultos, meninas mais velhas, lojas, revistas, jornais, vitrines - o mundo todo concordava que a boneca de olhos azuis e cabelo amarelo e pele rosada era o que toda menina mais almejava. "Olha", diziam, "ela é linda, e se você for 'boazinha' pode ganhar uma." Eu passava o dedo no rosto, pensando nas sobrancelhas desenhadas com um único traço; cutucava os dentes perolados, enfiados como duas teclas de piano entre lábios vermelhos em forma arco. Contornava o nariz arribitado, enfiava o dedo nos olhos de vidro azul, torcia o cabelo loiro.





























Não conseguia gostar dela.
Mas podia examiná-la para ver o que era que todo mundo dizia que era adorável. Se eu quebrasse os dedos minúsculos, dobrasse os pés chatos, soltasse o cabelo, girasse a cabeça, a coisa fazia um som - um som que, diziam, era um meigo e choroso "Mamãe", mas que, pra mim, soava como o balido de um cordeiro agonizando ou, mais precisamente, a porta da nossa geladeira abrindo com suas dobradiças enferujadas em julho. Se eu lhe removesse o olho frio e estúpido, continuava balindo "Aaaahhhh" se arrancasse a cabeça, sacudisse a serragem para fora, rachasse as costas contra a grade de metal da cama, ela continuava balindo. As costas de gaze rachavam e eu via o disco com seis furos, o segredo do som. Uma mera coisa redonda de metal.

...

Eu destruía bonecas brancas.

Mas o desmembramento das bonecas não era o verdadeiro horror. O que realmente aterrorizava era a transferência dos mesmo impulsos para garotinhas brancas. A indiferença com que eu poderia trucidá-las era abalada apenas pela minha vontade de fazer isso. Para descobrir o que me escapava: o segredo da magia que elas exerciam sobre os outros. O que fazia as pessoas olharem para elas e dizer “Aaaaaaahhhhhh”, mas não para mim ? O olhar de mulheres negras ao se aproximar delas na rua e a meiguice possessiva com que tocavam quando lidavam com elas.
Se eu as beliscasse, os seus olhos - ao contrários do brilho desvairado dos olhos da Baby Doll - contraíam-se de dor, e o grito delas não era o som da porta da geladeira, mas um fascinante grito de dor. Quando entendi como essa violência desenteressada era repugnate, que era repugnante porquer era desenteressada, a minha vergonha debateu-se em busca de refúgio. O melhor esconderijo foi o amor. Assim, conversão do sadismo original em ódio fabricado, em um amor fraudolento. Um pequeno passo até Shirley Temple. Muito mais tarde apredi a adorá-la, exatamente como aprendi a me deliciar com a limpeza, sabendo, mesmo enquanto aprendia, que mudar foi adaptar sem melhorar."


_________________________

"* Bill "Bojangles" Robinson (1878-1949), dançarino de sapateado. (N.T.)"








Os Fragmentos acima foram retirados do livro O Olho Mais Azul, o romance de estréia de Toni Morrison, escrito em meados da década de 60, a autora dona de uma lucidez e sensibilidade apaixonate foi a primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993, com este romance. Esses fragmentos foram alguns dos que mais me chamaram atenção, é parte da narração da personagem Claudia McTeer, uma menina negra de 10 anos, na década de 40, que descreve suas impressões sobre sua Baby Doll de olhos azuis, esses trechos estão no início do livro (nas páginas 23, 24 e 25). Essa foi só uma amostra de um livro escrito por uma mulher preta, sobre pretas(os) e para pretas(os).


"Cá entre nós," é esplêndido.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Mamice

Cuti


























Sou daqueles
que cobram o leite derramado

vovó que não era vaca
morreu seca
e seus bezerros brancos
agora touros desmamados
ainda procuram tetas
para seus rebentos viciados

sou daqueles
que cobram o leite derramado
e não aceito esmola
do que me foi roubado

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

‘Racismo ainda é forte nos EUA’, entrevista com Toni Morrison


Escritora cita melhoras na vida dos negros, mas ainda vê problemas muito graves.Em maio de 2006, o jornal “The New York Times” fez uma pesquisa com críticos literários para saber qual era o melhor romance publicado nos EUA nos últimos 25 anos. Resultado: “Amada”, de Toni Morrison. Muita gente diz que o romance de 1987, vencedor do Pulitzer, foi também o grande responsável por sua autora tornar-se a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura, em 1993. Aos 76 anos, Toni Morrison acaba de se aposentar como professora de literatura da Universidade de Princeton, mas não pára de se aventurar na escrita. Hoje, no Lincoln Center, em Nova York, estréia uma ópera baseada na história de Margaret Garner, a escrava que em 1856 fugiu do cativeiro com os filhos, e, mais de um século depois, inspirou o enredo de “Amada”. Será a estréia da parceria entre Toni e o compositor Richard Danielpour, e mais um sucesso da escritora que transformou a herança escravocrata americana em fonte de histórias que interrogam o sentido moral da condição humana. Com “Amada” sendo relançado no Brasil pela Companhia das Letras, a escritora fala, nesta entrevista, de literatura e de seu país.

































Marília Martins
Correspondente – Nova York

O Globo- Seu romance “Amada” é referência em questões éticas trazidas pela herança escravocrata, que os EUA e o Brasil têm em comum. Como a senhora imagina que seu livroé lido no Brasil e a qual a sua impressão sobre a cultura brasileira?

TONI MORRISON- Eu adoro o Brasil. Uma vez me perguntaram em que país eu iria viver se tivesse que deixar os EUA. Eu disse imediatamente: Brasil! Adorei minhas duas visitas ao país, tive uma impressão excelente da Festa Literária de Paraty, trata-se de um país muito vibrante. O que me atrai no Brasil é o fato de que é um país imenso, muito diversificado e totalmente irracional. E o mais importante: com uma grande população de origem africana, com uma cultura forte. Uma cultura negra que se sente na literatura, na música, na poesia, na dança, e com uma força incrível.

O Globo- Muitos críticos consideram “Amada” uma “Medéia” moderna, enfatizando mais o lado ético do que o aspecto político do enredo. A senhora concorda?

TONI MORRISSON- Acho que meu livro fala de uma ética da liberdade e pergunta se vale a pena viver numa sociedade violentamente repressiva e discriminatória. E neste sentido o livro ainda permanece como uma interrogação sobre o que existe de herança da escravidão em países que passaram por ela, como o Brasil e os EUA. E sinto que os leitores vão poder facilmente reconhecer as dores de uma sociedade que tanto tempo sofreu com a escravidão. Vão poder sentir o peso dessa herança na sociedade pós-escravocrata, um peso que se paga no cotidiano, com a discriminação surpreendida nos menores gestos, e contra a qual se tem que lutar incansavelmente, minuciosamente. Brasil e EUA têm essa herança da escravidão em comum, ainda que a cultura africana tenha tido caminhos diferentes nos dois países. E acho que meu romance ainda tem muito a dizer para as mulheres, sobre o modo como elas se posicionam nessa sociedade, perguntando-lhes se a voz feminina se faz ouvir ou não. Até aqui, a História de um modo geral – e também a história da escravidão – tem sido uma história masculina. Meu livro fala da escravidão feminina, que é uma escravidão dupla. E questiona o sentimento maternal, discutindo eticamente que mundo é esse no qual queremos que nossos filhos vivam. Será que eles poderão ser felizes? Será que eles terão o direito e a liberdade para isso? O que o Brasil de hoje oferece como futuro para uma criança negra?

O Globo- Os negros vivem melhor nos EUA hoje do que há 40 anos? Qual a sua visão sobre como o país mudou desde as primeiras conquistas do movimento pelos direitos civis nos anos 1960?

TONI MORRISON- Os EUA mudaram muito nos últimos 30 anos. O movimento pelos direitos civis teve vitórias importantes. Os negros vivem melhor, têm mais liberdade, mais empregos, têm direito a cartão de crédito, acesso a boas escolas, à casa própria, a um bom carro. Fazem parte do mercado capitalista. Os negros também conquistaram bons postos no governo, e agora têm um forte candidato à Presidência nas próximas eleições, Barack Obama. Então, por um lado, mudou muito, mas, por outro, aumentou a violência policial contra os negros, especialmente numa cidade grande como Nova York. As comunidades negras são mais vigiadas. A polícia foi recentemente acusada de assassinar jovens negros de periferia em Nova York, o que causou uma forte comoção social. Em resposta a fatos como esse, virou moda entre os jovens negros entrar em gangues. Daí o sucesso dos rappers.

O Globo- Qual sua impressão sobre Barack Obama? Os EUA já estão prontos para ter o primeiro presidente negro de sua história?

TONI MORRISON- Eu adoro Obama, tenho grande admiração por ele, mas não sei se vou mudar meu voto, que inicialmente iria para Hillary Clinton. Ela é uma candidata excelente, muitíssimo preparada, com idéias muito claras e democráticas sobre como os EUA podem voltar a ser uma grande nação aos olhos da comunidade internacional. Acho que Bill Clinton foi um grande presidente e que sua mulher pode ser também uma excelente presidente, especialmente para a comunidade negra. Então hoje eu me sinto dividida entre esses dois candidatos.

O Globo – A senhora é otimista em relação a uma vitória democrata nas próximas eleições?

TONI MORRISON – Cautelosamente, sim. Acho que a direita roubou o resultado das duas últimas eleições presidenciais e acho que está preparando alguma ação intimidatória, algum recurso para mudar o resultado mais uma vez em 2008. Eles sempre agem pela intimidação. São violentos, capazes de tudo. E nos EUA as pessoas podem simplesmente não ir votar, você sabe... Muita gente prefere ficar em casa, cruzar os braços e não se meter em política.

O Globo – É por causa dessa passividade que não existem hoje grandes manifestações contra a Guerra do Iraque, como as que havia nos anos 1960 e 70 contra a Guerra do Vietnã?

TONI MORRISON- Na Guerra do Vietnã houve convocação. Todos eram obrigados a fazer o serviço militar e a ir para o campo de batalha, caso fosse exigido. A Guerra do Iraque tem soldados voluntários: o governo os arregimenta entre os mais pobres da população e lhes paga um salário bem alto para ir para o campo de batalha. Então, por isso, muita gente não se importa com o que aconteça com esses soldados. Os filhos da classe média não estão envolvidos no conflito, e isso faz toda a diferença. Os tempos são outros. Mas as últimas eleições parlamentares mostraram que há um forte sentimento contra a guerra nos EUA.

O Globo- Será que os latino-americanos ilegais nos EUA não estão hoje numa situação próxima àquela em que os negros estavam há 30 anos?

TONI MORRISON – Sem dúvida. É uma demonstração de como o racismo continua forte nos EUA. Acho que os hispânicos ilegais nos EUA estão hoje na situação em que os negros estavam há 30 anos. Eles terão que se unir e reagir, como os negros fizeram. O governo Bush constrói muros na fronteira dos EUA com o México, mas não divulga dados que mostram que a maior porta de entrada de imigrantes ilegais, hoje, é a fronteira do Canadá. Eles não divulgam esses dados e nem reprimem imigrantes de origem britânica. Sabe por quê? Porque acham que eles vão fazer com que os brancos continuem a ser maioria, mesmo com a queda na taxa de natalidade entre eles. Ou seja: o racismo dita as regras na política de imigração.

O Globo – É verdade que o seu pai considerava os negros moralmente superiores aos brancos e impedia que brancos entrassem em sua casa?

TONI MORRISON- É verdade. Mesmo quando ele recebia o carteiro ou algum serviço de cobrança, não permitia que o funcionário entrasse na casa se ele fosse branco. Mas minha mãe, ao contrário, era sempre muito receptiva a pessoas de qualquer raça. É claro que ela só poderia receber visitas de brancos quando meu pai não estava em casa... Cresci assim, nessa família dividida quanto ao modo como tratar pessoas de raças diferentes. Fui educada numa escola de gente pobre, que tinha alunos de vários tons de pele. Por isso tenho hoje muitos amigos brancos. Aprendi, porém, que o racismo pode aparecer a qualquer momento e que ninguém está imune a ele.

O Globo- O movimento negro americano quer proibir os rappers de usar três palavras consideradas violentas e ofensivas aos negros e às mulheres (“ho”, diminutivo de whore, prostituta; “bitch”, cadela ou puta; e “nigger”, termo ofensivo para referir-se a alguém de cor negra). O que a senhora acha disso?

TONI MORRISON- Nesse caso é preciso fazer uma diferença: uma coisa é usar essas palavras quando se está na intimidade, de brincadeira; outra é o uso delas em público, num meio de comunicação. Eu sei que muita gente diz que os rappers não podem ser censurados, que muitos negros usam essas palavras no cotidiano. É verdade. Eu sou contra a censura. Mas adoraria que essas palavras desaparecessem, espontaneamente, das letras de música e da poesia dos rappers. Eles deveriam pensar nisso: as letras são cantadas por muita gente, inclusive brancos, e podem estar servindo para reforçar atitudes racistas.


(Entrevista transcrita de O Globo, Segundo Caderno, p.1, edição de 11 de setembro
de 2007.)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Entrevista com Bartolomeu Dias da Cruz sobre o caráter simbólico do cabelo

Por Jaqueline Barreto

Qual o significado social do cabelo e os sentidos a ele atribuídos?
Nessa sociedade, temos várias formas de representações estéticas, entretanto, a que impera é a européia. As inerentes à cultura negra ficam relegadas a um plano de inferioridade, relacionando-se ao conceito de feiúra, de fealdade. A importância do cabelo, particularmente na juventude, reside no fato que ele proporciona sentimento de pertencimento e bem estar valorizado. As pessoas se sentem pertencidas, bonitas, aceitáveis, se sentem na moda ou se sentem participantes de um contexto social. A estética influência na formação da personalidade. Vivemos em uma sociedade extremamente vaidosa, uma sociedade que cultiva a beleza, a aparência, o bem estar físico. Por isso, a estética é muito importante para a comunidade negra. A estética vai além da aparência. Ela traz um resultado muito importante que é a formação interna do ser, do jovem, do cidadão.

O cabelo demonstra a forma que a pessoa se vê e a forma que a pessoa é vista pela sociedade?

Não necessariamente. A partir do cabelo adotado a pessoa se vê e expressa o que a sociedade quer vê de acordo com os grupos, com as comunidades. Geralmente, quem tem o cabelo liso e loiro não vai querer encrespar o cabelo para parecer negro. Entretanto, muitos negros que têm o cabelo crespo podem se sentir influenciado e alienado ao ponto de querer alisar e dourar seus cabelos. O que eu quero dizer é o seguinte: a comunidade negra brasileira está em busca de uma aparência, nós não temos ainda definido, estamos fazendo experiências, laboratórios. Se você pode perguntar a várias mulheres negras, elas levam horas para poder vestir uma roupa e formular penteados. Essa inquietude, normalmente, é confundida com liberdade, só que não é liberdade.Sair a cada dia, com um modelo de cabelo, é também um conflito,pois demonstra que você não se sente confiante com sua aparência. Será que estou feia? Ainda impera no inconsciente coletivo da comunidade negra o desconforto pela aparência.

Então, o cabelo possui um capital simbólico muito grande ?

Ele é um dos principais instrumentos de auto-afirmação. Se você está em um grupo de negros de cabelos trançados você se sente pertencida. A estética precisa se fortalecer no ponto de vista da confiança, precisamos fortalecer a militância negra com confiança.

“Cabelo ruim” e “Cabelo bom”, que no dia- a-dia as pessoas reproduzem, expressam o conflito racial entre negros e brancos no Brasil?

Essa questão de “cabelo bom” e “cabelo ruim” é uma confusão baseada em cima de uma ignorância, um estereótipo perversamente introduzido dentro da comunidade negra com o objetivo de inferiorizar as pessoas. O cabelo é uma extensão do corpo. O corpo ou é sadio ou é doente. Portanto, o cabelo não está no conceito nem de bom ou ruim. Cabelo é cabelo.

Tem uma frase que diz: “Ser Negro é tornar-se Negro.” O que você tem a dizer sobre isso?

Eu posso até concordar em parte com essa idéia de que ser negro é tornar-se negro.A palavra tornar-se é uma transformação que pressupõe uma metamorfose, na qual podemos concluir que é um processo de militância, de consciência. Tornar-se vem a ser uma pessoa que tem consciência e pleno conhecimento da sua situação existencial seja ela étnico-racial ou humana. Então, tornar-se negro é uma revelação que perpassa pela militância e pela intelectualidade.

Como você avalia o cenário da estética negra baiana?

Nós temos uma população de aproximadamente 81% de negros no qual a maioria se submete a tratamentos estéticos. O Núcleo Omi-dùdú investe em estética porque acredita que o negro precisa ser tratado pelo negro. É diferente quando você entra no salão e uma pessoa negra cuida de você. É muito diferente. Um negro não tem nojo de pegar em outro negro. Imagine um esteticista alienado, acostumado a alisar cabelos, como ele vai se sentir bem? Como ele vai dedicar um bom atendimento a alguém de cabelos crespos?

domingo, 16 de agosto de 2009

O Mito da Caverna

Platão

SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.

GLAUCO - Imagino tudo isso.

SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou
madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.

GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!

SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?

GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.

SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?

GLAUCO - Não.

SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?

GLAUCO - Sem dúvida.

SÓRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?

GLAUCO - Claro que sim.

SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.

GLAUCO - Necessariamente.

SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?

GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.

SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?

GLAUCO - Certamente.

SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?

GLAUCO - A princípio nada veria.

SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.

GLAUCO - Não há dúvida.

SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.

GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.

GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.

SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?

GLAUCO - Evidentemente.

SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?

GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?

GLAUCO - Certamente.

SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?

GLAUCO - Por certo que o fariam.

SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.



Extraído de "A República" de Platão . 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291

As Sombras da vida - Mauricio de Sousa













quinta-feira, 9 de julho de 2009

Mulher Negra

Lélia Gonzalez

















Situação da população negra

Desde a independência aos dias atuais, todo um pensamento e uma prática políticosocial preocupados com a chamada questão nacional, têm procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da nação brasileira. Assim sendo, não foi por acaso que os imigrantes europeus concentraram-se em regiões que, do ponto de vista político e econômico, detêm a hegemonia quanto à determinação dos destinos do país. Refiro-me sobretudo à região Sudeste. Por isso mesmo, pode-se afirmar a existência de uma divisão racial do espaço, em nosso país (Gonzalez, 1979), uma espécie de segregação, com acentuada polarização, extremamente desvantajosa para a população negra: quase dois terços da população branca (64%)concentra-se na região mais desenvolvida do país, enquanto a população negra, quase na mesma proporção (69%), concentra-se no resto do país, sobretudo em regiões mais pobres como é o caso do Nordeste e de Minas Gerais (Hasenbalg, 1979).

Caracterizando sumariamente a formação social brasileira, diríamos que ela se estrutura em termos de acumulação capitalista dependente ou periférica, com conflito de interesses de classes antagônicas e onde o sistema político de dominação da classe dominante é rigoroso. E uma de suas contradições básicas é justamente “a cristalização de desigualdades extrema entre ‘regiões’ brasileiras,onde se pode distinguir, estruturalmente articulado, e a conseqüente reprodução dos níveis de pobreza e miséria em que vivem suas populações” (Farias, 1983:46. Grifos da autora). Acontece que o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro marcou, nas duas últimas décadas, a consolidação da sociedade capitalista em nosso país. Altas taxas de crescimento da economia e a acelerada urbanização, estimuladas pela intervenção direta do Estado, resultaram num tipo de “integração” das regiões subdesenvolvidas às exigências da industrialização do Sudeste. Como sabemos, a lógica interna que determina a expansão do capitalismo industrial em sua fase monopolista, entrava o crescimento equilibrado das forças produtivas nas regiões subdesenvolvidas. Estabelece-se, desse modo, o que Num (1978) caracterizou como desenvolvimento desigual e combinado que, dentre outros efeitos, remete à dependência neocolonial e a um “colonialismo interno”.

Por isso mesmo, os aspectos positivos do desenvolvimento econômico brasileiro (cuja fase culminante ficou conhecida como “milagre brasileiro”: 1968-1973) foram neutralizados por determinados fatores que confirmam o que dissemos mais acima. De acordo com Hasenbalg e Valle Silva (1984), destacam-se, entre esses fatores:

a) Deterioração das condições de vida dos estratos urbanos de baixa renda. Não esqueçamos que o deslocamento de grandes contingentes demão de obra do campo para os centros urbanos determinou, não o crescimento populacional destes últimos, mas a sua “inchação”, com a
conseqüente formação de bairros periféricos e de favelas (na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, existiam 757 mil favelados em 1970; em 1980, seu número aumentou para 1.740 mil, passando a constituir cerca de 34% da população do município), onde se pôde constatar: aumento da mortalidadeinfantil, aumento dos acidentes de trabalho, deterioração e crescimento insuficiente da infra-estrutura urbana de transportes, problemas habitacionais e de saneamento básico, altos índices de evasão escolar no primeiro grau, insuficiências quanto ao atendimento médico-hospitalar do sistema previdenciário, etc.. Desnecessário dizer que esse subproletariado é constituído majoritariamente por negros.

b) Concentração de renda. Apesar das mudanças da estrutura de classes durante esses vinte anos, os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos (não esqueçamos que ainda em 1980, um terço da população economicamente ativa – PEA, encontrava-se na faixa salarial de até 1 salário mínimo mensal2, sobretudo no que se refere ao campo. Continuando sua análise, os autores citados informam que, em 1970, os 50% mais pobres participavam em 14,9% dos rendimentos obtidos pela PEA; em 1980, essa participação baixou para 12,6%; os 10% mais ricos aumentaram sua apropriação de 46,7% para 50,9%; o 1% mais rico passou de 14,7% para
16,9%, superando consideravelmente sua apropriação, se comparada àquela recebida pelos 50% mais pobres. No campo, entretanto, é que esses percentuais se tornam gritantemente desiguais: o dos 50% mais pobres cai de 22,4% para 14,9%, enquanto o do 1% mais rico elevou-se de 10,5% para 29,3%.

Pelo exposto, o desenvolvimento econômico brasileiro, segundo esses analistas, resultou num modelo de modernização conservadora excludente. Poderíamos considerá-lo, também, a partir da noção de desenvolvimento desigual e combinado, em que a formação de uma massa marginal, de um lado, assim como a dependência neocolonial e a permanência de formas produtivas anteriores, de outro, constituemse como fatores que triplicam o sistema. Vale notar que a noção de massa marginal diz respeito à força de trabalho que, enquanto superpopulação relativa, torna-se supérflua em face do processo de acumulação hegemônico, representado pelas grandes empresas monopolistas. As questões relativas ao desemprego e ao
subemprego incidem justamente sobre essa superpopulação.

É nesse sentido que o racismo -- enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas -- denota sua eficácia estrutural na medida em que remete a uma divisão racial do trabalho extremamente útil e compartilhado pelas formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Portanto, o desenvolvimento econômico brasileiro, enquanto desigual e combinado, manteve a força de trabalho negra na condição de massa marginal, em tempos de capitalismo industrial monopolista, e de exército de reserva, em termos de capitalismo industrial competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico do monopólio).

Não é casual, portanto, o fato da força de trabalho negra permanecer confinada nos empregos de menor qualificação e pior remuneração. A sistemática discriminação sofrida no mercado de trabalho remete a uma concentração desproporcional de negros nos setores agrícola, da construção civil e da prestação de serviços. Segundo o Censo de 1980, esses setores absorvem 68% de negros e 52% de brancos. Como já dissemos anteriormente, um terço (33%) da PEA, em 1980, recebia até 1 salário mínimo. Se analisarmos essa percentagem em termos de composição racial, teremos 24% de brancos e 47% de negros. Do outro lado do espectro de rendimentos, a proporção de pessoas com renda mensal superior a 10 SM era de 3,72%: os brancos constituíam 8,5% e os negros cerca de 1,5%. De acordo com os dados da PNAD-82, houve um momento da proporção dos que ganham até 1 SM, que passaram de 33% para 36%, numa prova patente do empobrecimento do país. Desnecessário dizer que os negros foram os que mais sofreram: de 44% passaram para cerca de 50%, enquanto os brancos foram de 24%
para 28%. E é justamente no Nordeste (9 milhões de negros para 3,8 milhões de brancos) que ficam evidenciadas as maiores desigualdades: de cada 10 negros integrados na PEA, 6 ganham até 1 SM. A distribuição de renda, como vemos, não deixa de constituir um dos aspectos das desigualdades raciais em nosso país.

Uma outra dimensão dessas desigualdades se faz presente no acesso ao sistema educacional e às oportunidades de escolarização. O Censo de 1980 revelava a existência de 35% de analfabetos na população maior de 5 anos. Entre os brancos, a proporção era de 25%, enquanto entre os negros era de 48%, ou seja, quase o dobro. Os graus de desigualdade educacional acentuam-se ainda mais, quando se trata de acesso aos níveis mais elevados de escolaridade. Em 1980, os brancos tinham 1,6 vezes mais oportunidades de completarem de 5 a 8 anos de estudos, 2,5 vezes mais de completarem de 9 a 11 anos de estudo e 6 vezes mais de completarem 12 anos ou mais de estudos (Hasenbalg e Valle Silva). E isto significa que os negros já nascem com menos chance de chegarem ao segundo grau e praticamente nenhuma de atingirem a universidade.

SITUAÇÃO DA MULHER NEGRA

As transformações ocorridas na sociedade brasileira, no período 1968-1980, tiveram um impacto considerável na força de trabalho feminina, sobretudo nos anos setenta. “A primeira metade da década foi o auge do ‘milagre brasileiro’. (...) A força de trabalho feminina dobra de 1970 para 1976. Mais interessante ainda: em 1969 havia cem mil mulheres na universidade para duzentos mil homens. Em 1975 este número tinha subido para cerca de quinhentas mil mulheres (para quinhentos e oito mil homens), passando a proporção de 1:2, em 69, para 1:1 em 75. O número de mulheres na universidade havia quintuplicado em cinco anos! Vemos aí como se conjugam, então, os fatores econômicos reforçando os comportamentais e viceversa.
Isto pode explicar, ao menos em partes, em que nestes primeiros cinco anos da década, mesmo sem haver movimento organizado, tenha surgido interesse tão agudo para o problema da mulher. Foi nesses cinco anos, mesmo, que se processou a maior transformação da condição da mulher na história de nossoPaís” (Muraro, 1983:14. Grifos nossos). E, num outro contexto, lemos: “Em definitivo, as mulheres não só tendem a conseguir uma melhor distribuição na estrutura ocupacional, como também abandonam os setores da atividade que absorvem a força de trabalho menos qualificada e pior remunerada, para ingressar em proporções crescentes na indústria e nos serviços modernos” (Hasenbalg e Valle Silva, 1984:40. Grifos da autora).

Pelo exposto na primeira parte deste trabalho, os trechos acima reproduzidos não se referem, de modo algum, à mulher negra ou às mulheres negras. Por conseguinte, algumas questões impõem-se à nossa reflexão. E a primeira delas, diz respeito à situação da mulher negra no interior da população economicamente ativa, à sua inserção na força de trabalho.

Como os trabalhadores negros (92,4%), as trabalhadoras negras concentram-se, sobretudo, nas ocupações manuais (83%), o que significa: 4/5 da força de trabalho negra tem uma inserção ocupacional caracterizada por baixos níveis de rendimentos e de escolaridade. As trabalhadoras negras encontram-se alocadas em ocupações manuais rurais (da agropecuária e da extrativa vegetal) e urbanas (prestação de serviços), tanto como assalariadas quanto como autônomas e não remuneradas. Já a proporção de mulheres brancas nas ocupações manuais é bem menor: 61,5% (Araújo Costa e Garcia de Oliveira, 1983).

Enquanto isso, nas ocupações não-manuais, a presença da trabalhadora negra ocorre em proporções muito menores: 16,9% para 38,5% de trabalhadoras brancas. A análise dessas ocupações, divididas em dois níveis, o médio e o superior, revelanos aspectos bastante interessantes com relação às dificuldades de mobilidade social ascendente para a mulher negra. Naquelas de nível médio (pessoal de escritório, bancárias, caixas, professoras de primeiro grau, enfermeiras, recepcionistas, etc.), a concentração de mulheres é muito maior que a de homens. Mas, se a dimensão racial é inserida entre elas, a constatação é que a proporção de negras também é muito menor (14,4%) que a de brancas (29,7%). Como em muitas das atividades de nível médio exige-se contato direto com o público, torna-se
evidente a dificuldade de acesso que as mulheres negras têm com relação a essas atividades (questão de “boa aparência”). Quando se trata das profissionais de nível superior, das empresárias e das administradoras, a presença da mulher negra é quase de invisibilidade: 2,5% para 8,8%.

No que diz respeito às diferenças de rendimento médio, o Censo de 1980 apresentanos os seguintes dados: até 1 salário mínimo, um percentual de 23,4% de homens brancos, 43% de mulheres brancas, 44,4% de homens negros e 68,9% de mulheres negras. De 1 a 3 SM, 42,5% de homens brancos, 38,9% de mulheres brancas, 42,4% de homens negros e 26,7% de mulheres negras. De 3 a 5 SM: 14,6% de homens brancos, 9,5% de mulheres brancas, 8,0% de homens negros e 3,1% de mulheres negras. E, dentre aqueles com rendimentos acima de 10 SM: 8,5% de homens brancos, 2,4% de mulheres brancas, 1,4% de homens negros e 0,3% demulheres negras (Hasenbalg e Valle Silva).

Comparativamente às famílias brancas pobres, a situação das famílias negras não é de igualdade. Já a PNAD-76 demonstrava que, em termos de renda familiar até 3 SM, por exemplo, a situação era a seguinte: cerca de 50% de famílias brancas para 75% de famílias negras. As diferenças eram e continuam expressivas, quando se trata da taxa de atividade dessas famílias: a das negras é bem maior que a das brancas. Isto significa que o número de membros das famílias negras inseridos na força de trabalho é muito maior que aquele das famílias brancas para a obtenção do mesmo rendimento familiar. Um dos efeitos desse trabalhar mais e ganhar menos implica no lançar mão do trabalho do menor. Por isso mesmo, a proporção de menores negros na força de trabalho é muito maior que a de menores brancos (e
estamos falando daqueles que se encontram na faixa dos 10 aos 17 anos). Por aí se entende porque nossas crianças mal conseguem cursar o primeiro grau: não se trata, como pensam e dizem alguns, de uma “incapacidade congênita da raça” para as atividades intelectuais, mas do fato de que, desde muito cedo, têm que “ir à luta” para ajudar na sobrevivência da própria família.

Em pesquisa que realizamos com mulheres negras de baixa renda (1983), muito poucas, dentre nossas entrevistadas, começaram a trabalhar já adultas. Migrantes na grande maioria (principalmente vindas de Minas Gerais, do Nordeste ou do interior do Estado do Rio de Janeiro), e muitas vezes já tendo “trabalhado na roça”, entravam na força de trabalho por volta dos 8-9 anos de idade para “ajudar em casa”. Desnecessário dizer que, nos centros urbanos, começavam a trabalhar “em casa de família”, além de tentarem freqüentar alguma escola. Pouquíssimas conseguiram “fazer o primário”. Um dos depoimentos mais significativos para nós, o de Maria, fala-nos das dificuldades da menina negra e pobre, filha de pai desconhecido, em face de um ensino unidirecionado, voltado para valores que não os dela. E, contando seus problemas de aprendizagem, ela não deixava de criticar o comportamento de professores (autoritariamente colonialistas) que, na verdade, só fazem reproduzir práticas que induzem nossas crianças a deixar de lado uma escola onde os privilégios de raça, classe e sexo constituem o grande ideal a ser atingido, através do saber “por excelência”, emanado da cultura “por excelência”: a ocidental burguesa.

Por isso mesmo, o texto de abertura desta segunda parte do nosso trabalho (Muraro, 1983) é bastante sintomático: se as transformações da sociedade brasileira nos últimos vinte anos favoreceram “a mulher”, não podemos deixar de ressaltar que essa forma de universalização abstrata encobre a realidade vivida, e duramente, pela grande excluída da modernização conservadora imposta pelos donos do poder do Brasil pós-64: a mulher negra. É por aí que se entende, por exemplo, uma das contradições do movimento de mulheres no Brasil. Apesar de suas reivindicações e de suas conquistas, ele acaba por reproduzir aquilo que Hasenbalg (1982:105) sintetizou com felicidade: “No registro que o Brasil tem de si mesmo, o negro tende à condição de invisibilidade”. Apesar das poucas e honrosas exceções (e Muraro é uma delas), no sentido de maior entendimento da situação da mulher negra, poderíamos dizer que a dependência cultural é uma das características desse movimento em nosso país.

A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NEGRA

O desenvolvimento e a expansão dos movimentos sociais, na segunda metade dos anos setenta, propiciou a mobilização e a participação de amplos setores da população brasileira, no sentido da reivindicação de seus direitos e de uma intervenção política mais direta. No caso da população negra, vamos encontrá-la sobretudo no Movimento Negro e no Movimento de Associação de Moradores nas favelas e bairros periféricos (ressaltando-se aí, o papel e a importância do Movimento de Favelas).

O movimento Negro desempenhou um papel de extrema relevância na luta antiracista em nosso país, sensibilizando inclusive os setores não negros e buscando mobilizar as diferentes áreas da comunidade afro-brasileira para a discussão do racismo e suas práticas. “Importa dizer que os principais protagonistas dos movimentos políticos negros atuais são os filhos dos primeiros negros a ingressarem de forma definitiva na classe operária e nas classes médias, dos heróis da migração interna; são mesclados entre os primeiros estudantes negros a ingressarem na universidade, jovens operários e trabalhadores negros e dançarinos de soul --
símbolo moderno da contestação da juventude negra à dominação branca e da miopia dos liberais ante o racismo e sua falsa consciência nacional.” (Cardoso, 1983-1984:46). Os centros, a partir dos quais a luta cresceu, foram as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro que, bem no coração do Sudeste, apresentaram, de imediato, as evidências das contradições do “milagre brasileiro”. E dentre esses movimentos, vale ressaltar o Movimento Negro Unificado que, em seus primeiros dois anos de existência (1978-1980) não só se estendeu a outros estados do
Sudeste, do Nordeste o do Sul, como desenvolveu uma série de atividades que muito contribuíram para o avanço da consciência democrática, anti-racista e anticolonialista em nosso país. E a presença de mulheres negras, não apenas na criação como na sua direção, não pode ser esquecida (Gonzalez, 1982).

Enquanto o Movimento Negro desenvolveu-se a partir sobretudo de setores das classes médias negras, o Movimento de Favelas organizou-se a partir do subproletariado urbano em associações de moradores. Como já vimos, o processo de favelização dos grandes centros urbanos do Sudeste determinou a presença altamente representativa desse novo contingente populacional (os supracitados heróis da migração) que não aceitou passivamente sua exclusão do “processo do Brasil”. Suas reivindicações vão desde a exigência de melhores condições de
habitação/saneamento básico, de transporte, educação, saúde, etc., ao título de propriedade do solo urbano que ocupam. Dado o seu caráter inovador, o Movimento de Favelas acabou por influenciar os setores da classe média no sentido de também de organizarem em associações de moradores. Em termos de Rio de Janeiro, por exemplo, a existência de dois tipos de organizações apontam para esse fato: a FAFERJ (favelas) e a FAMERJ (bairros). Desnecessário dizer que a presença de mulheres negras no Movimento de Favelas tem sido altamente representativa.

No que diz respeito aos primeiros grupos organizados de mulheres negras, durante esse período, eles surgem no interior do Movimento Negro. E isto, em parte, se explica pelo fato de que os setores médios da população negra que conseguiram entrar no processo competitivo do mercado de trabalho no setor das ocupações nãomanuais, são aqueles mais expostos às práticas discriminatórias (Oliveira, Porcaro e Araújo Costa, 1980). Assim sendo, é no Movimento Negro que se encontra o espaço necessário para as discussões e o desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo e suas práticas e de articulações com a exploração de classe. Por outro lado, o Movimento Feminista ou de Mulheres, que tem suas raízes nos setores mais avançados da classe média branca, geralmente “se esquece” da
questão racial, como já dissemos anteriormente. E esse tipo de ato falho, a nosso ver, tem raízes históricas e culturais profundas (Gonzalez, 1981 e 1982-b).

O desempenho das mulheres negras na formação do Movimento Negro no Rio de Janeiro, por exemplo, foi da maior importância. Vejamos o que nos diz a antropóloga Maria Berriel, da Universidade Federal Fluminense. Seu envolvimento com a questão negra iniciou-se em 1969, da seguinte maneira: “Foi sobretudo percebendo as dificuldades de alunos negros (por força da expansão do capitalismo, nós começamos a receber alunos negros na universidade); ocorreu que muitos dos nossos alunos estavam com dificuldades no mercado de trabalho. Então, resolvi
fazer uma pesquisa para avaliar os artifícios e as estratégias que impediam o aproveitamento do negro na esfera ocupacional. Esses alunos não só -- juntamentE com alunos brancos -- entraram numa faixa de atividade bastante atuante, como até fizeram uma dramatização: recortavam anúncios, apresentavam-se nos lugares e, em seguida, os alunos brancos os substituíam; e sentia-se todo o esquema de restrição montado, claramente. (...) E dali, houve um contato com a Cândido Mendes, que passou a organizar congressos, ou melhor, encontros”. E esses encontros ocorreram sobretudo por iniciativa da professora Maria Beatriz
Nascimento que, já desde 1972, encontrava-se à frente da Semana Cultural Negra, realizada na UFF (semana esta que, ainda segundo Berriel, ela “organizou insistentemente, aceitando os desafios que foram colocados gradativamente, na medida em que a semana ia sendo implantada”).

Os históricos encontros na Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro-RJ) atraíram toda uma nova geração negra que ali passou a se reunir para discutir o racismo e suas práticas, enquanto modo de exclusão da comunidade negra. Viviase, naqueles momentos, a euforia do “milagre brasileiro”, do “ninguém segura este país” e coisas que tais. Mas, a “negadinha” ali reunida (fins de 1973 / início de 1974), sabia muito bem o que isto significava para a nossa comunidade. E, fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio Movimento Negro), era justamente o da atuação das mulheres negras que, ao que parece, antes mesmo da
existência de organizações do Movimento de Mulheres, reuniam-se para discutir o seu cotidiano marcado, por um lado, pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo não só dos homens brancos, mas dos próprios negros. E não deixavam de reconhecer o caráter mais acentuado do machismo negro, uma vez que este se articula com mecanismos compensatórios que são efeitos diretos da opressão racial (afinal, qual a mulher negra que não passou pela experiência de ver o filho, o irmão,o companheiro, o namorado, o amigo, etc., passarem pela humilhação da suspeição policial, por exemplo?). Nesse sentido, o feminismo negro possui sua diferença específica em face do ocidental: a da solidariedade, fundada numa experiência histórica comum. Por isso mesmo, após sua reunião, aquelas mulheres: Beatriz
(Nascimento), Marlene, Vera Mara, Joana, Alba, Judite, Stella, Lucia, Norma, Zumba, Alzira, Lísia e várias outras (eram cerca de vinte) juntavam-se a seus companheiros para a reunião ampliada (que chamavam de “Grupão”), onde colocavam os resultados de sua discussão anterior, a fim de que o conjunto também refletisse sobre a condição da mulher negra.

Em, 1975, quando as feministas ocidentais se reuniam na Associação Brasileira de Imprensa para comemorar o Ano Internacional da Mulher, elas ali compareceram, apresentando um documento onde caracterizavam a situação de opressão damulher negra (Gonzalez, 1982-a). Todavia, dados os caminhos seguidos por diferentes tendências que se constituíram a partir do “Grupão”, esse grupo pioneiro acabou por se desfazer e suas componentes continuaram a atuar, então, nas diferentes organizações que se criaram.

Os anos seguintes testemunharam a criação de grupos de mulheres negras (Aqualtune, 1979; Luiza Mahin, 1980; Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 1982) que, de um modo ou outro, foram reabsorvidos pelo Movimento Negro. Todas nós, sem jamais termos nos distanciados do MN, continuamos nosso trabalho de militantes no interior das organizações mistas a que pertencíamos (André Rebouças, IPCN3, SINBA, MNU, etc.), sem, no entanto, desistir da discussão de nossas questões específicas junto aos nossos companheiros que, muitas vezes, tentavam nos excluir do nível das decisões, delegando-nos tarefas mais ”femininas”.
Desnecessário dizer que o MN não deixava (e nem deixou ainda) de reproduzir certas práticas originárias de ideologia dominante, sobretudo no que diz respeito ao sexismo, como já dissemos. Todavia, como nós, mulheres e homens negros, nos conhecemos muito bem, nossas relações, apesar de todos os “pegas”, desenvolvem-se num plano mais igualitário cujas raízes, como dissemos acima, provêm de um mesmo solo: a experiência histórico-cultural comum. Por aí se explica a competição de muitos militantes com suas companheiras de luta (que se
pense no “esquecimento” a que nos referimos anteriormente). Mas, por outro lado, por aí também se explica o espaço que temos no interior do MN. E vale notar que, em termos de MNU, por exemplo, não apenas nós, mulheres, como nossos companheiros homossexuais, conquistamos o direito de discutir, em congresso, asnossas especificidades. E isto, num momento em que as esquerdas titubeavam sobre “tais questões”, receosas de que viessem a “dividir a luta do operariado”.

Enquanto isso, nossas experiências com o Movimento de Mulheres, caracterizavamse como bastante contraditórias: em nossas participações em seus encontros ou congressos, muitas vezes éramos consideradas “agressivas” ou “não-feministas” porque sempre insistimos que o racismo e suas práticas devem ser levados em contas nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, constituem formas estruturais de opressão e exploração em sociedades como a nossa. Quando, por exemplo, denunciávamos a opressão da exploração das empregadas domésticas por suas patroas, causávamos grande mal-estar; afinal, dizíamos, a exploração do
trabalho doméstico assalariado, permitiu a “liberação” de muitas mulheres para se engajarem nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a violência policial contra os homens negros, ouvíamos como resposta que violência era aquela da repressão contra os heróis da luta contra a ditadura (como se a repressão, tanto num quanto noutro caso, não fizesse parte da estrutura do mesmo estado policial-militar). Todavia, não deixamos de encontrar solidariedade da parte de setores mais avançados do MM4 que demonstraram interesse em não só divulgar nossas lutas como em colaborar conosco em outros níveis.

Apesar de aspectos positivos em nossos contatos com o MM, as contradições e ambigüidades permanecem, uma vez que, enquanto originário do MM ocidental, o MM brasileiro não deixa de reproduzir o “imperialismo cultural” daquele (Bourne, 1983). E, nesse sentido, não podemos esquecer que alguns setores do MM não têm o menor escrúpulo em manipular o que chamam de “mulheres de base” ou “populares” como simples massa de manobra para a aprovação de suas propostas (determinadas pela direção masculina de certos partidos políticos). Mas, por outro lado, muitas “feministas” adotam posturas elitistas e discriminatórias em face dessas mesmas mulheres populares. De acordo com o relato de companheiras do NZINGA, por ocasião da reunião em que seria tirado o nome daqueles que representaria o
MM no comício das diretas do dia 21 de Março no Rio, uma militante feminista branca, não aceitando a indicação de uma mulher negra e favelada, declarou, com todas as letras que “mulher de bica d´água não pode representar as mulheres“ (Garcia, 1984). “E ainda recentemente, participando de uma reflexão sobre a ‘sexualidade feminina’, convocada pelo PT5 para poder encaminhar as questões da mulher (...) constatamos (...) afirmações como “a mulher negra desperta mais cedo para a sexualidade”, ou “a empregada doméstica como veículo da descoberta de temas sexuais através de revistas, conversas, etc.” ou ainda, o que é muito comum, “a questão da mulher negra é uma questão de classe e não de raça”” (Garcia,
1984:5). Por essas e outras é que se entende porque os grupos de mulheres negras se organizaram e se organizam a partir do MN e não do MM. Aliás, as pouquíssimas negras que militam apenas no MM têm muita dificuldade no sentido de se aprofundar no que diz respeito à questão racial. Talvez porque achem que no Brasil não existe racismo (porque, como disse Millor Fernandes, “o negro sabe onde é o seu lugar.”)...

O grande encontro do MN com o Movimento de Favelas ocorreu a partir da campanha eleitoral de 1982, uma vez que, até aquele momento, vinham atuando de maneira paralela. Os efeitos da chamada abertura política, concretizados na formação de novos partidos políticos, atraíram setores que, até então, haviam permanecido à margem do processo político partidário. Os novos programas, de um outro modo, integraram algumas das reivindicações dos movimentos sociais e os partidos de oposição preocuparam-se em lançar candidatos populares. E foi nesse contexto que surgiram candidaturas originárias do MN e do MF.

No meu caso pessoal, tive a oportunidade de fazer a campanha em conjunto com duas irmãs faveladas: Benedita da Silva e Jurema Batista. De um lado, a profunda consciência dos problemas e das necessidades concretas da comunidade; de outro, a consciência da discriminação racial e sexual enquanto articulação da exploração de classe. A troca de saberes/experiências foi proveitosa para ambos os lados; e o ponto de entendimento comum foi justamente a questão da violência policial contra a população negra. No final da campanha nossas falas estavam inteiramente afinadas, apesar das diferenças individuais. A despeito de toda uma experiência nesse terreno, vivenciamos situações de extrema riqueza política e pessoal.

Apesar dos resultados negativos para ambos os movimentos -- e justamente por isso --, se nos impôs a exigência de efetuar uma avaliação conjunta da atuação dos candidatos negros dos partidos de oposição no processo eleitoral. Daí em diante, os dois movimentos passaram a ter uma atuação mais unitária. E alguns exemplos são bastante significativos: a presença de faveladas no Encontro de Mulheres, promovido pelo Grupo de Mulheres Negras do Rio de janeiro (março de 1983); a cobertura e divulgação de eventos do MN pelo jornal do MF, “O Favelão”; a criação de organizações vinculadas ao MN nas áreas periféricas do Rio de Janeiro; a criação de uma vice-presidência comunitária na estrutura do IPCN e etc.. Nessa linha de trabalho -- mediante a articulação do MF, do MM e do MN -- Benedita da Silva tomou a iniciativa da organização e realização do I Encontro de Mulheres de Favelas e Periferias (julho de 1983). Pelo exposto, fica evidente que novas perspectivas se abriram para ambos os movimentos.

E é nesse contexto que se inscreve a criação do NZINGA/Coletivo de Mulheres Negras, no dia 16 de junho de 1983, justamente na sede da Associação de Moradores do Morro dos Cabritos, por um grupo de mulheres originárias, sobretudo, do MF e MN: Jurema Batista (MF), Geralda Alcântara (MF), Miramar da Costa Correia (MN - Mov. de Bairros), Sonia C. da Silva (MF), Sandra Helena (MF), Bernadete Veiga de Souza (MF), Victoria Mary dos Santos (MN) e Lélia Gonzalez (MN). Em meados de julho daquele mesmo ano, a companheira Jurema Batista
(fundadora e presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí) seguia para Lima como delegada do NZINGA para o II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, juntamente com duas representantes do Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro (e a atuação dessas companheiras foi de tal ordem que conseguiram que se criasse um Comitê Anti-Racismo no interior do Encontro). Pela primeira vez, na história do feminismo negro brasileiro, uma favelada representava, no exterior, uma organização específica de mulheres negras.

Somos um Coletivo: não aceitamos que a arbitrariedade de uma hierarquia autoritária determine nossas decisões, mas que elas sejam o resultado de discussões democráticas. Somos um Coletivo de Mulheres porque lutamos contra todas as formas de violência, ou seja, lutamos contra o sexismo e a discriminação sexual. Somos um Coletivo de Mulheres Negras: além do sexismo, lutamos contra o racismo e a discriminação racial que fazem de nós o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira (...) Nosso objetivo é trabalhar com as mulheres negras de baixa renda (mais de 80% das trabalhadoras negras), que vivem
principalmente nas favelas e nos bairros de periferia. E por quê? Porque são discriminadas pelo fato de serem mulheres, negras e pobres”. Este é um trecho de um panfleto distribuído no dia 25 de março de 1984, no Morro do Andaraí, onde o NZINGA organizou, em um só evento, a comemoração do 8 de março (Dia Internacional da Mulher) e do 21 de março (Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial). No mesmo panfleto também dizíamos quem foi NZINGA e explicávamos o significado das duas datas.

A escolha do nome de NZINGA tem a ver com a nossa preocupação de resgatar um passado histórico racalcado por uma “história” que só fala dos nossos opressores. E a famosa rainha Jinga (NZINGA) teve um papel da maior importância na luta contra o opressor português em Angola. E o pássaro que usamos como símbolo tem a ver com a tradição nagô, segundo a qual, a ancestralidade feminina é representada por pássaros. E nossas cores têm a ver, o amarelo com Oxum, e o roxo com o movimento internacional de mulheres.

Para encerrar, gostaríamos de prestar nossa homenagem a uma grande companheira de MN (pertencíamos ao mesmo grupo, o Luiza Mahin, quando militávamos no MNU) que vem desenvolvendo um trabalho da maior importância com relação aos seus companheiros e companheiras de profissão. Refiro-me a Zezé Motta que, coerentemente em sua militância de mulher negra, fundou o Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro/CIDAN que aí está, inclusive, para desmascarar essa estória de que “não existem atores negros” (o que justifica até certos atores de respeito, pintarem-se de preto) e, fundamentalmente, para que a história passada e presente dos artistas negros fiquem devidamente registradas. Como se vê, trata-se de um trabalho cujos efeitos só podem trazer
benefícios para os negros que trabalham num setor profissional que se destaca pelo seu caráter altamente discriminador, do ponto de vista racial.

Pelo exposto, evidencia-se que nossa preocupação, em termos de participação da mulher negra, focalizou especialmente aquelas mulheres que atuam sobretudo no MN. Já o trabalho desenvolvido pelas mulheres negras nas associações de moradores, tanto de favelas quanto de bairros periféricos, registra uma história de lutas heróicas cuja análise não poderíamos fazer aqui por questões de espaço e de tempo. Conseqüentemente, num outro texto, dada a riqueza de elementos a serem apresentados para a nossa reflexão.

AXÉ NGUNZO, MUNTU!

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2 Cerca de U$ 60.00, em julho de 1985.
3 IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras
4 MM [movimento de mulheres]
5 PT [Partido dos Trabalhadores]