quarta-feira, 26 de agosto de 2009

‘Racismo ainda é forte nos EUA’, entrevista com Toni Morrison


Escritora cita melhoras na vida dos negros, mas ainda vê problemas muito graves.Em maio de 2006, o jornal “The New York Times” fez uma pesquisa com críticos literários para saber qual era o melhor romance publicado nos EUA nos últimos 25 anos. Resultado: “Amada”, de Toni Morrison. Muita gente diz que o romance de 1987, vencedor do Pulitzer, foi também o grande responsável por sua autora tornar-se a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura, em 1993. Aos 76 anos, Toni Morrison acaba de se aposentar como professora de literatura da Universidade de Princeton, mas não pára de se aventurar na escrita. Hoje, no Lincoln Center, em Nova York, estréia uma ópera baseada na história de Margaret Garner, a escrava que em 1856 fugiu do cativeiro com os filhos, e, mais de um século depois, inspirou o enredo de “Amada”. Será a estréia da parceria entre Toni e o compositor Richard Danielpour, e mais um sucesso da escritora que transformou a herança escravocrata americana em fonte de histórias que interrogam o sentido moral da condição humana. Com “Amada” sendo relançado no Brasil pela Companhia das Letras, a escritora fala, nesta entrevista, de literatura e de seu país.

































Marília Martins
Correspondente – Nova York

O Globo- Seu romance “Amada” é referência em questões éticas trazidas pela herança escravocrata, que os EUA e o Brasil têm em comum. Como a senhora imagina que seu livroé lido no Brasil e a qual a sua impressão sobre a cultura brasileira?

TONI MORRISON- Eu adoro o Brasil. Uma vez me perguntaram em que país eu iria viver se tivesse que deixar os EUA. Eu disse imediatamente: Brasil! Adorei minhas duas visitas ao país, tive uma impressão excelente da Festa Literária de Paraty, trata-se de um país muito vibrante. O que me atrai no Brasil é o fato de que é um país imenso, muito diversificado e totalmente irracional. E o mais importante: com uma grande população de origem africana, com uma cultura forte. Uma cultura negra que se sente na literatura, na música, na poesia, na dança, e com uma força incrível.

O Globo- Muitos críticos consideram “Amada” uma “Medéia” moderna, enfatizando mais o lado ético do que o aspecto político do enredo. A senhora concorda?

TONI MORRISSON- Acho que meu livro fala de uma ética da liberdade e pergunta se vale a pena viver numa sociedade violentamente repressiva e discriminatória. E neste sentido o livro ainda permanece como uma interrogação sobre o que existe de herança da escravidão em países que passaram por ela, como o Brasil e os EUA. E sinto que os leitores vão poder facilmente reconhecer as dores de uma sociedade que tanto tempo sofreu com a escravidão. Vão poder sentir o peso dessa herança na sociedade pós-escravocrata, um peso que se paga no cotidiano, com a discriminação surpreendida nos menores gestos, e contra a qual se tem que lutar incansavelmente, minuciosamente. Brasil e EUA têm essa herança da escravidão em comum, ainda que a cultura africana tenha tido caminhos diferentes nos dois países. E acho que meu romance ainda tem muito a dizer para as mulheres, sobre o modo como elas se posicionam nessa sociedade, perguntando-lhes se a voz feminina se faz ouvir ou não. Até aqui, a História de um modo geral – e também a história da escravidão – tem sido uma história masculina. Meu livro fala da escravidão feminina, que é uma escravidão dupla. E questiona o sentimento maternal, discutindo eticamente que mundo é esse no qual queremos que nossos filhos vivam. Será que eles poderão ser felizes? Será que eles terão o direito e a liberdade para isso? O que o Brasil de hoje oferece como futuro para uma criança negra?

O Globo- Os negros vivem melhor nos EUA hoje do que há 40 anos? Qual a sua visão sobre como o país mudou desde as primeiras conquistas do movimento pelos direitos civis nos anos 1960?

TONI MORRISON- Os EUA mudaram muito nos últimos 30 anos. O movimento pelos direitos civis teve vitórias importantes. Os negros vivem melhor, têm mais liberdade, mais empregos, têm direito a cartão de crédito, acesso a boas escolas, à casa própria, a um bom carro. Fazem parte do mercado capitalista. Os negros também conquistaram bons postos no governo, e agora têm um forte candidato à Presidência nas próximas eleições, Barack Obama. Então, por um lado, mudou muito, mas, por outro, aumentou a violência policial contra os negros, especialmente numa cidade grande como Nova York. As comunidades negras são mais vigiadas. A polícia foi recentemente acusada de assassinar jovens negros de periferia em Nova York, o que causou uma forte comoção social. Em resposta a fatos como esse, virou moda entre os jovens negros entrar em gangues. Daí o sucesso dos rappers.

O Globo- Qual sua impressão sobre Barack Obama? Os EUA já estão prontos para ter o primeiro presidente negro de sua história?

TONI MORRISON- Eu adoro Obama, tenho grande admiração por ele, mas não sei se vou mudar meu voto, que inicialmente iria para Hillary Clinton. Ela é uma candidata excelente, muitíssimo preparada, com idéias muito claras e democráticas sobre como os EUA podem voltar a ser uma grande nação aos olhos da comunidade internacional. Acho que Bill Clinton foi um grande presidente e que sua mulher pode ser também uma excelente presidente, especialmente para a comunidade negra. Então hoje eu me sinto dividida entre esses dois candidatos.

O Globo – A senhora é otimista em relação a uma vitória democrata nas próximas eleições?

TONI MORRISON – Cautelosamente, sim. Acho que a direita roubou o resultado das duas últimas eleições presidenciais e acho que está preparando alguma ação intimidatória, algum recurso para mudar o resultado mais uma vez em 2008. Eles sempre agem pela intimidação. São violentos, capazes de tudo. E nos EUA as pessoas podem simplesmente não ir votar, você sabe... Muita gente prefere ficar em casa, cruzar os braços e não se meter em política.

O Globo – É por causa dessa passividade que não existem hoje grandes manifestações contra a Guerra do Iraque, como as que havia nos anos 1960 e 70 contra a Guerra do Vietnã?

TONI MORRISON- Na Guerra do Vietnã houve convocação. Todos eram obrigados a fazer o serviço militar e a ir para o campo de batalha, caso fosse exigido. A Guerra do Iraque tem soldados voluntários: o governo os arregimenta entre os mais pobres da população e lhes paga um salário bem alto para ir para o campo de batalha. Então, por isso, muita gente não se importa com o que aconteça com esses soldados. Os filhos da classe média não estão envolvidos no conflito, e isso faz toda a diferença. Os tempos são outros. Mas as últimas eleições parlamentares mostraram que há um forte sentimento contra a guerra nos EUA.

O Globo- Será que os latino-americanos ilegais nos EUA não estão hoje numa situação próxima àquela em que os negros estavam há 30 anos?

TONI MORRISON – Sem dúvida. É uma demonstração de como o racismo continua forte nos EUA. Acho que os hispânicos ilegais nos EUA estão hoje na situação em que os negros estavam há 30 anos. Eles terão que se unir e reagir, como os negros fizeram. O governo Bush constrói muros na fronteira dos EUA com o México, mas não divulga dados que mostram que a maior porta de entrada de imigrantes ilegais, hoje, é a fronteira do Canadá. Eles não divulgam esses dados e nem reprimem imigrantes de origem britânica. Sabe por quê? Porque acham que eles vão fazer com que os brancos continuem a ser maioria, mesmo com a queda na taxa de natalidade entre eles. Ou seja: o racismo dita as regras na política de imigração.

O Globo – É verdade que o seu pai considerava os negros moralmente superiores aos brancos e impedia que brancos entrassem em sua casa?

TONI MORRISON- É verdade. Mesmo quando ele recebia o carteiro ou algum serviço de cobrança, não permitia que o funcionário entrasse na casa se ele fosse branco. Mas minha mãe, ao contrário, era sempre muito receptiva a pessoas de qualquer raça. É claro que ela só poderia receber visitas de brancos quando meu pai não estava em casa... Cresci assim, nessa família dividida quanto ao modo como tratar pessoas de raças diferentes. Fui educada numa escola de gente pobre, que tinha alunos de vários tons de pele. Por isso tenho hoje muitos amigos brancos. Aprendi, porém, que o racismo pode aparecer a qualquer momento e que ninguém está imune a ele.

O Globo- O movimento negro americano quer proibir os rappers de usar três palavras consideradas violentas e ofensivas aos negros e às mulheres (“ho”, diminutivo de whore, prostituta; “bitch”, cadela ou puta; e “nigger”, termo ofensivo para referir-se a alguém de cor negra). O que a senhora acha disso?

TONI MORRISON- Nesse caso é preciso fazer uma diferença: uma coisa é usar essas palavras quando se está na intimidade, de brincadeira; outra é o uso delas em público, num meio de comunicação. Eu sei que muita gente diz que os rappers não podem ser censurados, que muitos negros usam essas palavras no cotidiano. É verdade. Eu sou contra a censura. Mas adoraria que essas palavras desaparecessem, espontaneamente, das letras de música e da poesia dos rappers. Eles deveriam pensar nisso: as letras são cantadas por muita gente, inclusive brancos, e podem estar servindo para reforçar atitudes racistas.


(Entrevista transcrita de O Globo, Segundo Caderno, p.1, edição de 11 de setembro
de 2007.)

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